DEDINHO DOCE

 

O silêncio foi interrompido pelo som do sino anunciando o fim da aula. Enquanto de pé, recitávamos a oração, meu olhar distraído se fixara num raio de sol, que ao penetrar pela janela entreaberta, dourava a poeira do ar, revelando um movimento circular de partículas. No canto, próximo ao quadro-negro, uma pequena aranha trabalhava em sua teia. Em pouco tempo a vassoura de Mariinha viria destruir a obra de arte.

– ...da nossa morte, Amém!

Cadeiras em seus lugares, Dona Aurélia organizava a fila. Simulando conferir meu material escolar, abri pela terceira vez a pasta que que ganhara de papai no último Natal e se parecia com uma valise de executivo. Com um sonoro e agradável “clic” tranquei-a, com intuito de chamar a atenção dos colegas mais próximos (estão vendo que linda? A mais bonita da sala! ), mas ninguém pareceu interessado.

Entre filas e alvoroços, fomos deixando a escola. Seu Zezito, o zelador, foi o último a sair e trancou o portão. Uma aura de encanto permaneceu naquele ambiente ainda repleto de nossa energia infantil, como se a hora do recreio se recusasse a chegar ao fim. Não parecia significar muito uma escola com paredes feitas de zinco (pintadas de azul claro), que no futuro seria desmontada ou transformada em depósito de qualquer coisa, até que finalmente seria descartada no lixo. Essa era a parte física. Porém, o que estava sendo construído ali, jamais morreria. Diante de mim um mundo novo se descortinava. Verdade que esse mundo se tornava quente e abafado no verão e demasiado frio no inverno. Mas isso não importava muito. Importavam a voz da professora, o quadro negro, o pó de giz, os livros e cadernos, a merenda e os colegas. E o pátio cuja grama, na estação das chuvas, crescia a ponto de ocultar nossos joelhos. A tesoura do jardineiro não dava conta do serviço.

 

Nesse dia, ao sair da escola, passei na casa de titia Lulu para dizer um oi e comer um dedinho-doce. Era “entrar e sair”, mamãe recomendara, para que eu não me demorasse na volta para casa, que distava cerca de um quilômetro. Fui entrando pelo portão sempre aberto e subi a rampa de terra batida. Lá em cima onde o terreno era plano, um enorme caldeirão borbulhava equilibrado sobre tijolos, no meio dos quais as toras em brasa crepitavam. O líquido colorido em ebulição, emanava um vapor inodoro.

– Bênção, Tia!

– Bençoi! – Ela abanava com a mão livre o rosto suado. Tinha o olhar manso, o sorriso sem dentes. Fiquei parada a seu lado. Seus cabelos longos, castanhos e lisos, estavam sempre repartidos ao meio, arranjados em duas bonitas tranças finalizadas por laços de fita e se debruçavam sobre os seios fartos. Um vestido de cores discretas já desbotado pelo uso, se complementava com um cinto feito do mesmo tecido que contornava a cintura e limitava o espaço dos seios.

– Posso misturar um pouco?

Ela me entregou a colher.

– Toma cuidado para não se queimar!

Afastou-se, desaparecendo no interior da casa. Parte de mim acompanhou-a até o quarto pequeno e escuro onde, numa cama de ferro, seu cunhado Caudé  agonizava. Meu tio emprestado, Alan Cardec, tinha câncer e eu só ouvia sussurros pelos cantos, porque era um tabu, porque nesse tempo certos males eram incuráveis, porque... os porquês são tantos, que ficarão melhor em outro texto. Pois a parte de mim que ficou lá fora, envolvida pela luz diáfana do dia,  manteve-se protegida dos problemas surreais.

 

Fiquei ali, mexendo a mistura do caldeirão com a grande colher de pau que mais parecia um remo e que demandava considerável esforço de meus braços finos. Quantos sapos, lagartos e ervas daninhas seriam suficientes para uma poção perfeita? Minha imaginação evocou as bruxas de Walt Disney. Lídia e eu éramos leitoras assíduas! Em voz alta, revezávamos por página para não cansarmos. Assinalávamos com os dedos os balões dos diálogos para que nossas irmãs menores entendessem, de forma que também elas entravam na fantasia e nos cenários das histórias em quadrinhos.

 

– Pronto, Isaura! Pode deixar que eu assumo agora!

– Tia, a senhora canta a canção da moça dos brincos de ouro?

Ela começou a contar a história, cantando na parte em que a moça raptada e presa dentro do saco era obrigada a cantar para que seu raptor ganhasse moedas: “Neste surrão eu entrei, ciranda, neste surrão morrerei, ciranda, sem os meus brincos de ouro, ciranda, que na fonte eu deixei...” Porém, teve que interromper para atender a um cliente que buzinava lá embaixo. Era um freguês que viera buscar uma encomenda e permaneceu no interior do carro, de onde recebeu e pagou pelo serviço.

Na intenção de sair, fui até o banco de madeira tosca onde deixara minha pasta. Titia me interrompeu:

– Não quer comer um dedinho-doce?

– Opa! Ia me esquecendo!

Contornar a casa só levou um minuto. Lá estava eu me deliciando com o sumo adocicado das uvas-do-Japão, enquanto pensava nas mãos de fada de titia. Tudo que ela colocava no caldeirão se renovava como num passe de mágica. Em meio aos vapores e corantes “Xadrez” as roupas iam ganhando nova coloração e em seguida, na água fria corrente, o excesso da tinta era removido. Depois de secas, eram passadas com ferro a brasa. Feito isso, iam para os cabides à espera do dono. Muita gente importante da cidade encomendava seus serviços. Para não  atrasar as entregas ela contava com a ajuda de Geraldo Madalena, seu esposo, irmão de Cardec.

 

Ao me despedir, ela entregou-me um pacote contendo meu uniforme tingido e passado, pronto para ser usado na semana seguinte, na parada cívica de Sete de Setembro. Fora feito por minha mãe e eu teria de usá-lo por quatro anos, por isso tinha o comprimento maior, uma bainha enorme que iria sendo diminuída na medida em que eu crescesse. E quando perdia a cor, era só levar para titia, que possuía a única tinturaria da cidade e tinha coração e paciência. O trabalho árduo não lhe roubara a delicadeza. Eu sempre associei a figura da minha tia àquela árvore que se adaptara no pequeno espaço atrás da casa, e que, não obstante as condições, produzia sombra e frutos para suprir a natureza. Um doce, a titia Lulu!

 

Satisfeita da vida, agradeci e tomei o rumo de casa.

 

Imagem: tirada da Internet 

 

 

Zaira Belintani
Enviado por Zaira Belintani em 14/12/2022
Reeditado em 19/09/2023
Código do texto: T7672059
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