Decepção

Jacinto encontrava-se no ocaso da vida, naquele período em que o desfecho pode ocorrer a qualquer momento. Aposentado, mas ainda trabalhando bastante, lúcido e saudável, Jacinto sabia, por simples raciocínio aritmético, que era mesmo o crepúsculo.

Jacinto lembrara-se do que, certa vez, lhe havia dito sua advogada – que ele preferia chamar de matrona – no Brasil, todo cidadão tem o direito de matar uma pessoa. Se for cidadão do bem, com curso superior e endereço certo, a impunidade cuidará para que nada lhe aconteça. Claro, precisa ter feito um pé-de-meia para bancar seus advogados.

Jacinto, de repete, dá-se conta de que ainda não matara alguém. Chances tivera, lista com nomináveis também já existira, mas o fato não havia sido perpetrado. Nem por ele, nem tampouco encomendado.

Com horror, Jacinto se lembra de que jamais brigara com alguém na rua, de rolar no chão, sair machucado e sangrando. Que existência tediosa essa que ele levara. E esse puxar pela memória foi ficando cada vez mais decepcionante: ele até hoje nada havia furtado, nem tampouco roubado alguém. Nem sequer em um troco se havia enganado a seu favor.

Lembrou-se de quando leu uma reportagem dando conta de que seus colegas, com os quais havia trabalhado proximamente, estavam respondendo a processo por recebimento de propina. Todos os nomes estavam lá, menos o dele. E se não recebeu propina, não se lembra de ter pagado. Aliás, lembra-se sim. Jamais pagou. Esteve próximo de subornar um policial rodoviário para não ser multado, mas recuou. O policial, vendo seu arrependimento, aplicou-lhe um pequeno sermão e deixou-o seguir, sem multa.

Mas Jacinto já bebeu. Sim, bebeu e algumas vezes ficou tonto. Mas nada de porre, desses de enguiçar a língua, vomitar no carro do colega, ter de tomar glicose na veia. Nada! Sim, misturou vinho com cerveja e caipirinha em festas e churrascadas. Certamente as doses não surtiram efeito. Um frouxo; um fraco; uma vergonha!

E quanto às drogas? Maconha, cocaína, haxixe, crack, LSD, as novas drogas sintéticas? Jacinto era filho de fumantes. Nunca fumou um único cigarro na vida. Nem charuto, nem cachimbo de espécie alguma. Tomou alguns remédios para ajudar numa depressão que logo se foi.

Jacinto sentia vergonha do tipo de vida que havia vivido. O que será que seus amigos pensariam dele, no fundo? Que era um otário? Um babaca? Um medroso que não sabe aproveitar a vida? Todos os outros falavam com orgulho dos porres, dos dias em que ficaram confinados, por conta da cocaína e do crack. Das orgias sexuais, das traições. Ele nada disso tinha em sua biografia.

E quanto ao amor? Jacinto tinha consciência de que nunca amara. Amar, de verdade. Não sabia o que era amar uma pessoa. Sim, tinha sentido desejo – muito desejo e atração. Até hoje sentia desejo e atração. Mas amor? Não, não, exceto pelo seu fiel cão.

Sobre seus amigos dos grandes feitos, sabia que também não tinham amado, mas eram bons na bravata. Sabia-se ter algo que poucos ou nenhum deles tinha: autoconsciência!

René Henrique Götz Licht
Enviado por René Henrique Götz Licht em 14/12/2022
Código do texto: T7671479
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