Anjo da guarda
Rainer era filho único, embora tivesse um casal de irmãos muito mais velhos, do primeiro casamento do pai. Nunca os conheceu pessoalmente. O pai e seus dois filhos também não se falavam nem trocavam correspondências. Para o pai, filhos eram seres ingratos e não valia a pena tê-los. A mãe de Rainer precisava de um homem apenas para lhe dar um filho e acreditava que casamento era um erro que se cometia duas vezes: primeira e última.
Apesar dessa visão um tanto pessimista, essa minúscula família funcionava bem: o pai, bom provedor, e a mãe, boa dona de casa. Não tinham convívio algum com parentes nem próximos nem distantes. Festejavam aniversários, natais e páscoas sempre a três, em certa harmonia.
Até por volta dos oito anos Rainer era ocasionalmente abraçado e afagado. Não tinha memória sobre abraços e afagos por parte do pai, mas tinha, por parte da mãe. Rainer tinha boa alimentação física, mas passava fome afetiva, sobretudo porque esses gestos de afeto começaram a rarear. Em algum momento os pais de Rainer devem ter notado que ele não era exatamente o que haviam desejado: era um menino que não era menino, numa época história em que isso era uma vergonha imensa para a família.
Quando Rainer concluiu o Ginásio, seus pais não estiveram presentes na formatura. Quando se apresentava nas audições de piano, no conservatório, em que invariavelmente era medalhado, seus pais não estavam presentes. Quando concluiu o Colegial, também com louvor, seus pais não estavam presentes. E Rainer acostumou-se à vida de órfão de pais vivos.
Quando Rainer concluiu a Faculdade, o pai já havia falecido e a mãe não foi à formatura. Rainer já tinha uma certa ideia de que, tanto o pai quanto a mãe tinham vergonha de serem vistos ao seu lado. Durante o velório do pai, das 02h30 da madrugada até por volta de 06h00, Rainer ficou sozinho na sala velando o pai. Foi o momento que Rainer teve para poder conversar um pouco com ele, mas havia muitos nós na garganta para liberar conversas. Dias depois, a mãe de Rainer mostrou-se aliviada por, finalmente, estar livre de uma união que nunca lhe proporcionara alegria.
Rainer sempre fora aluno de desempenho superior e tornou-se profissional competente também. Logo passou a receber um excelente salário e a proporcionar um outro padrão de vida para sua mãe, com direito a reformas na casa, troca dos móveis por peças modernas, eletrodomésticos de última geração, carro etc. Rainer havia se tornado o provedor, mas só das coisas materiais. Abraços continuavam sendo só distanciados e em datas comemorativas. Declarações de amor nunca foram testemunhadas pelas paredes da casa. Por mais que Rainer tentasse agradar a mãe, nada era suficiente para satisfazê-la. Ele sempre lhe devia algo mais.
Rainer concluiu com brilhantismo seu mestrado e, anos mais tarde, seu doutorado. Sua mãe nunca esteve presente em nenhum desses momentos marcantes em sua vida acadêmica. Mas a mãe de Rainer foi, com alegria, à formatura de uma vizinha que se tornara amiga da minúscula célula familiar. Rainer ficou profundamente desapontado e magoado.
Houve até uma discussão em que a mãe de Rainer declarou que sempre desejou ter tido um filho atlético e esportista e não, um acadêmico. E formulou claramente que ele não era o filho que ela queria ter tido. Ele, agora tomado de ódio, prontamente respondeu que ela também não era a mãe que ele queria ter tido. E esses ditos só fizeram aprofundar os ressentimentos que há anos existiam entre ambos. Já não havia mais dúvidas de que um se havia fechado ao outro de modo definitivo.
Anos após a morte da mãe, parece que os ressentimentos, as mágoas, as decepções se foram como que dissolvendo e Rainer certo dia se deu conta de que tanto seu pai como sua mãe tinham sido os melhores pais que as condições deles lhes permitiriam ser. Cuidaram dele, sempre, com atenção e zelo, não lhe deixando faltar nada material. Se hoje Rainer se considerava bem-sucedido devia isso também, aos seus pais.
Se, por um lado, o relacionamento entre pais e filho não foi regado de afeto, não faltou, em nenhum momento, o amparo material. E, depois, com Rainer no papel de provedor, esse amparo continuou a existir. Essa reconfiguração de emoções de ressentimento foi levando Rainer a entender que ninguém precisava perdoar alguém: se não se fez melhor, foi por absoluta incapacidade pessoal para tal. E, por fim, Rainer conscientizou-se de que, se estivesse no lugar dos pais, mal teria conseguido fazer melhor do que eles. Se tivesse conseguido.
Na medida em que os anos foram contribuindo com amadurecimento, Rainer conseguiu se aproximar cada vez um pouco mais da imagem do pai que se havia perdido há décadas. A silhueta do pai ausente e quase invisível se foi delineando e, junto, vieram sentimentos de bem querer. Se lhe fosse dado estar com algum deles por alguns instantes, certamente iria escolher estar com o pai para encerrar longos discursos jamais verbalizados.
A infância de Rainer marcada pela falta de afetividade fez dele um jovem e um adulto incapaz de expressar bem seus sentimentos. Tornou-se como que imagem e semelhança dos pais. Sabia que, por alguma razão misteriosa, havia escapado da sina de levar vida marginal, de se entregar aos delitos e às drogas e, por que não, até mesmo ao suicídio. Hoje, sem receio de naufragar financeiramente, Rainer sabia que seus buracos afetivos jamais seriam preenchidos; não haveria mais tempo computacional suficiente para essa reparação.
Mas, em meio ao escuro dos buracos da falta de afeto, Rainer notou um diminuto raio de luz. Logo identificou esse raio de luz como sendo a expressão do amor: Rainer, no ocaso da vida, estava aprendendo a amar. Era capaz de abraçar, beijar e sentir falta. E seu professor nesse aprendizado foi não um homem, mas seu cão que, há anos, havia comprado por impulso quase incontrolável. Rainer não tinha mais dúvidas de que esse cão chegara a ele com essa missão ensiná-lo a amar.
E essa tênue descoberta do amor operou portentos: Rainer se deu conta de que jamais havia lutado sozinho na vida. Agora já não tinha mais dúvidas de que, desde menino bem pequeno, sentia uma presença forte do seu lado que lhe comandava a seguir em frente e apenas confiar. E Rainer assim o fez: nos momentos mais angustiantes nunca se vira privado de um conforto interno intraduzível em palavras, mas nem por isso, menos forte e presente.
Rainer deu-se conta de que sempre estivera – e continuava estando - sob a proteção do seu Anjo da Guarda que o conduzia secretamente para dispô-lo sob a mão de Deus. E é por isso que a vida de Rainer lhe fazia sentido, pois que ele havia optado por uma vida com Deus.