O que prega uma peça, o que afirma e o que discorda.
Hoje é quinta de um dezembro quente. A ansiedade cresce em progressão geométrica, pensar não dá conta das coisas, escrever não da conta do futuro. As escrevinhações se esfarelam com o tempo. Esses dias tem sido atribulados, muita coisa pelo caminho, essa crônica está pra ser escrita há uns 4 dias, ainda uma massa amorfa, um algo tentando encontrar causa e consequência.
Esses dias li sobre Bourdieu e ilusão biográfica. Explodiu minha cabeça, porque eu tenho essa mania: catar o que já foi pra dar sentido ao que já sou e que vou ser. Essa narrativizacão da vida, esse tentar assimilar aquela vez em que eu vi cosmos pela primeira vez.
Deslumbramento. É ensino fundamental, a mini versão de mim olha atento pra um homem da TV. Explica sobre os astros, sobre como os antigos mediram o tamanho da terra, diz que somos seres numa nave de semente de dente de leão.
O homem na TV era Carl Sagan.
Aquele tom onírico, uma voz com semi-respostas, e digo semi respostas, porque é dá natureza da própria ciência não querer soluções finais, mas o que importa é que aquilo me veio como uma profusão. Foi mais ou menos nessa época que eu decidi que eu queria ser um "homem da TV"
Ou então aquela vez em que um jornalista praticamente amassou os sonhos doces de um jovem que queria seguir a profissão:
14, talvez menos. Uma dessas festas de bairro. Gente, comida, música. Talvez fosse de algum político, não lembro. A coisa é que estávamos na fila, colocando comida, pegando docinhos, até que eu avisto um cara de camisa social, microfone na mão. Um jornalista, um homem da TV! Meus olhos brilharam envidraçados, larguei a fila de mão e fui até lá meio tímido. Nem lembro se eu sabia mesmo o que um jornalista fazia, mas eu olhando de baixo pra cima do homem, cutuquei-o e disse quando virou:
- Eu quero fazer isso aí, quero ser jornalista.
O cara virou, ainda rindo da conversa jogada fora de antes com a pessoa a frente, e disse
- Quer mesmo, menino? Queira não, a gente ganha é pouco.
Girei em decepção, voltei pra fila.
Hoje eu acho graça, quer dizer, vai ver ele não estava de todo errado, vai ver o comentário ácido devia ser mais pro colega de profissão que pra mim. O próprio tentar organizar esses fragmentos em coisas mais ou menos concisas já me trai, já é ilusório. A verdade é que as coisas simplesmente não carregam em si um isso e aquilo. A ilusão biográfica é autodefesa pro que fazemos, pra como erramos, o justificar do que somos, e até do que não somos.
Mas Bourdieu que vá pro [insira aqui um palavrão] É melhor navegar na nossa verdade artificial do que navegar em mar nenhum, se não vão acabar que nem eu, um pedaço de dúvida que vê um chapéu meio branco, meio vermelho que nem naquele conto sobre Exú, em que dois amigos que nunca brigavam, por nenhuma hipótese, acabaram se animalescando.
Na história, esqueceram de fazer a tradicional oferenda a divindade, que decidiu lhes pregar uma peça.
Exú se vestiu de andarilho e colocou um chapéu metade branco metade vermelho, de forma que cada um via apenas um lado. Os dois amigos estavam debaixo duma árvore descansando a cesta, e viram o peregrino que pediu informação, deram, e ao sair, um falou:
- Estranho aquele chapéu, todo vermelho.
- Vermelho, não. O chapéu era branco.
Assim eles entraram em discussão, que virou briga, que virou um matando o outro. Depois disso eu caí num pensar sobre, me imaginei com as três figuras presas em mim. O que prega uma peça, o que afirma e o que discorda.
Não sei se isso tudo faz um tiquinho de sentido, não sei se é só um retrato imparcial das coisas, mas essas crônica vai ser menor dessa vez, matei metade dela, assim como fiz com as certezas da minha infância.
Ah! Antes que eu me esqueça, eu não segui o desconselho daquele cara, continuo querendo atingir os outros do mesmo jeito que fui atingido um dia, quando criança. Tenho dessas, uma mania de não querer desistir, desapegar, jogar fora.
Se isso tem motivo ou não, não sei. Tenho estado sonhâmbulo, um sonho que anda. Que anda não, que gira, e que mesmo que dê meia volta...
Acaba voltando nessa cirandescência que é você.