A separação

“Não sei o que deu errado”, disse-me ela ao falar dos acontecimentos de sua vida passada, quando, rompeu o seu casamento. Garantiu-me que os fatos tão diferentes neste caso de separação valiam a minha escuta. Claro que fiquei interessada e pus-me a ouvir o relato dessa amiga de tantas décadas:

“Éramos excelentes parceiros de viagem. Guardo as aventuras corajosas e emocionantes em alto mar, trilhas, lindas praias, uma visita num coral na maré baixa com deslumbrantes surpresas vivas.

No início, nossas conversas eram mais abstratas, sobre nossos trabalhos, mas, logo se politizaram quando ele recebeu uma cartinha de José Serra, e aproveitei a ocasião para naquela noite adentro apresentar argumentos contra, e ele os aprovou tanto que adesivou o próprio carro com a propaganda de um candidato de esquerda e até temi por ele, porque o ambiente de trabalho não era favorável à liberdade de expressão política à esquerda. Pois ele para sempre defendeu as bandeiras do socialismo. Isto foi um marco para as decisões do nosso dia-a-dia, como, dobrar salário mínimo da funcionária, considerar apenas os dias de segunda a sexta feira como úteis. De consciência muito lúcida, nunca o vi negar alguma ajuda a quem pedia, e, nunca o vi dar moedinhas, mas sim, perguntar a necessidade e procurar pagá-la na íntegra.

Lógico que decepções se acumularam dos dois lados. E culminaram com a ideia do rompimento. Mas essa parte eu não irei contar, porque a levei para o divã.

Ao acordar no último dia em que sairia em definitivo de casa, ele se deparou com uma mesa de café da manhã muito bem preparada por mim. Do lado das frutas, um bilhete, que fiz aos prantos, antes de dormir, e que trazia uma parte de música*:

Drão, o amor da gente é como um grão

Uma semente de ilusão

Tem que morrer pra germinar

Plantar n'algum lugar

Ressuscitar no chão nossa semeadura

Quem poderá fazer aquele amor morrer

Nossa caminhadura?

Dura caminhada

Pela estrada escura

Drão, não pense na separação

Não despedace o coração

O verdadeiro amor é vão

Estende-se infinito, imenso monolito

Nossa arquitetura

Quem poderá fazer

Aquele amor morrer

Nossa caminhadura?

Finalizei com desejos de uma vida boa, algo assim. Acho que ele estava bem mexido e não conseguiu partilhar da celebração de paz de um final, ainda que final.

Na consumação do divórcio, afirmo de antemão que os fatos que se seguiram foram objetivamente uma sequencia de acertos, acertos bem humanos.

Iniciam-se na conversa com meu advogado, a primeira noção de que não queria causar a ele nenhum mal, nenhum dano financeiro, e então, abri mão sem pestanejar, de um alto deposito em minha conta bancaria, devolvendo-o mediante um cheque que era herança dele. Mesmo com as considerações advocatícias, de que estava em minha conta, que eu poderia devolver parte apenas, que havia descendente. Nada me fez desistir de tratar a questão moral, descartando as prerrogativas legais. Apostei na relação respeitosa, consciente, enfim, digna, confiável. Senti enorme alívio por tratar as coisas dessa forma. Ringue não, jamais, ficamos somente com a já doída frustação que representa um casamento rompido.

No dia do cartório para formalizar a separação, fomos cada qual em seu carro. Encontramo-nos na porta, seguimos juntos para os locais. Primeiro o advogado, depois o juiz. Nada agradável. Descemos juntos, cabisbaixos, passamos pelo café, ele me convidou, e depois constrangido, me disse que havia esquecido a carteira. Paguei, sem problemas. Lá fora dissemos tchau e assim foi, um vazio enorme no peito, mas segura do que realizei. Dar continuidade teria nos levado aquém do desejável, e mágoas trazem ainda mais tristezas.

Nos nossos acertos com relação à filha, concordei que se podiam descumprir completamente as tais visitas a cada 15 dias. Pai e filha viajaram juntos, ele esteve com ela todas as vezes que ambos decidiram; e ao pedido de minha sogra, de que desejava muito que a neta a fosse ver, eu respondi que queria também muito que minha filha frequentasse a casa dela, que, aliás, eu acharia um privilégio que assim fosse.

Nossa filha dizia “não sei por que meus pais se separaram, pois um fala bem do outro”, e lógico, não a cobrimos de lamentações que ela, tão pequena, não poderia compreender, houve mesmo sem que combinássemos, um grande respeito quando falávamos da mãe dela e do pai dela para ela. Seguimos construindo separadamente nossas vidas, mas sempre conversando sobre nossa filha, nunca levantando problemas que ficaram distantes, e sobre os quais não havia mais porque compartilhar. Eu tenho certeza de que isso fez bem a ela.

No correr dos anos nunca nos incomodamos ou nos tratamos com rispidez, ao contrário, estivemos sempre abertos para resolver questões econômicas e relativas à nossa filha. Mais à frente, todo esse empenho em nos tratarmos com civilidade, resultou numa atenção especial dele quando precisei passar uns dias no hospital: ele cuidou de me visitar, providenciar o que fosse preciso. Minha filha estudando, minha família distante, sim, foi o meu ex-marido, com o aval da esposa dele, a quem muito agradeço, que esteve lá diariamente. Foi especialmente importante merecer essa atenção. Por fim, conto que almoçamos, jantamos, frequentemente com nossa filha, e celebramos desse modo a tolerância e o respeito humano. “Era isso que gostei de contar.”

Após ouvi-la, querida amiga, digo que seu relato é impressionante! É relativamente raro que casais ao romperem o contrato de casamento se tornem quase amigos. Ambos são dignos dessa paz que sentem por atingirem a separação não agressiva ainda que dolorosa. Você não conhecia o significado da letra da música Drão* do genial Gilberto Gil, mas ela é bem adequada para o seu caso também, minha amiga. A música faz referência ao fato de que “quando sentimos muito carinho por uma pessoa, mesmo separados, não queremos vê-la sofrer”. E ele emprega o neologismo “caminhadura”, que significa caminhar a longa caminhada. Digo que seu casamento não prosseguiu, mas sua separação foi/é um sucesso!

Quero indicar outra música que também fala sobre as relações afetivas.

O Amor (interpretação de Gal Costa)***

Talvez

Quem sabe

Um dia

Por uma alameda

Do zoológico

Ela também chegará

Ela que também

Amava os animais

Entrará sorridente

Assim como está

Na foto sobre a mesa

Ela é tão bonita

Ela é tão bonita

Que na certa

Eles a ressuscitarão

O século trinta vencerá

O coração destroçado já

Pelas mesquinharias

Agora vamos alcançar

Tudo o que não

Podemos amar na vida

Com o estrelar

Das noites inumeráveis

Ressuscita-me

Ainda

Que mais não seja

Porque sou poeta

E ansiava o futuro

Ressuscita-me

Lutando

Contra as misérias

Do cotidiano

Ressuscita-me por isso

Ressuscita-me

Quero acabar de viver

O que me cabe

Minha vida

Para que não mais

Existam amores servis

Ressuscita-me

Para que ninguém mais

Tenha de sacrificar-se

Por uma casa

Um buraco

Ressuscita-me

Para que a partir de hoje

A partir de hoje

A família se transforme

E o pai

Seja pelo menos

O Universo

E a mãe

Seja no mínimo

A Terra

A Terra

A Terra

Fonte: Musixmatch

Compositores: Ney Costa Santos Filho / Caetano Emmanuel Viana Telles Veloso

Os versos perfeitos, o resgate do sentido maior do amor, a libertação do cotidiano quando este massifica, foram inspirados na poesia revolucionária de Vladimir Maiakóvski (1923) ****, importante poeta russo. A tradução, notas e organização de Boris Schnaiderman, Augusto de Campos e Haroldo de Campos ( 2013). Espero que goste, que possamos todas e todos derrubar os padrões que nos são impostos, e ensinar nossos filhas e filhos a serem mais saudáveis, mais críticos e insubmissos. A liberdade começa em casa.

*https://www.vagalume.com.br/gilberto-gil/drao.html

**https://www.letras.mus.br/blog/drao-significado/

***https://www.vagalume.com.br/gal-costa/ressuscita-me.html

****https://www.revistaprosaversoearte.com/o-amor-de-maiakovski-magistralmente-interpretado-por-gal-costa-da-adaptacao-de-caetano-veloso-e-ney-costa-santos/