“Não é a pornografia que é obscena. É a fome que é obscena “
José Saramago
De todas as fomes, a da alma é a que mais mata.
Tarcisio Bruno
A DOR É A COR DE UM SENTIMENTO
O dia amanheceu, e apesar do sol, Jorge não estava para sorrisos. Na verdade, nunca sorria. Era necessário sair para fazer algumas compras, e isso tornava seu dia um inferno. Um calor insuportável e muita gente circulando pelas ruas aumentavam o seu mau humor. Era o cenário de “guerra” que Jorge não suportava, mas a batalha era inevitável. Morar sozinho oferecia uma indelével paz, mas a companhia indesejada das pessoas em locais públicos não tinha como evitar. Professor aposentado, Jorge não tinha ninguém, era um homem sozinho e não desejava companhia. Habitava um pequeno apartamento no primeiro andar de um prédio feio e burocrático.
Ao passar em frente ao parque da cidade, Jorge viu crianças correndo sob os olhares descuidados de pais nas telas do celular. Sentiu o cheiro de terra e pisou em folhas caídas vítimas do outono. O contato com a natureza lhe fazia muito bem. Nesses momentos, ainda que soturno, sua alma sorria. Observou uma alameda de ipês que era caminho para o lago, onde em um caramanchão tinha um banco no qual um casal de jovens ensaiava beijos e carícias. Lembrou de sua saudosa mulher, falecida há quase quinze anos, vítima de um câncer agressivo. Não tinha filhos, nunca teve vontade de tê-los.
“ Não estou vazio
não estou sozinho
pois anda comigo
algo indescritível “
- Carlos Drummond de Andrade –
Na saída do parque, avistou o supermercado. Entrou e saiu muito rápido do estabelecimento, comprou o que era obrigatório, mas também adquiriu o que era indispensável: cigarros e vinho.
Ao passar em frente à padaria, sentiu uma vontade inescusável de tomar um café e retomar a releitura de “O Meu Pé de Laranja Lima “, de José Mauro de Vasconcelos (sempre tinha um livro consigo). Ainda chorava com a morte do Portuga, e a releitura era uma busca vã e tola de encontrar um novo final para o livro. Chorava, mas entendia que a tragédia tornava o romance imortal. Não há beleza sem tristeza.
Busquei decifrar a tristeza
Para entender uma lágrima
Descobri nela a beleza
Que é na dor lavar a alma
A solidão é frágil abrigo
Pois o peito não é indolor
Ele deseja um sentimento amigo
Que na vida chamam amor
Então de olhos cerrados compreendi
Que a tristeza é a alma em sinceridade
Ensinando que a dor do tempo que vivi
É o intervalo para uma nova felicidade...
- Tarcisio Bruno –
Escolheu a última mesa como sempre, pediu um café e uma água com gás. Sentou e abriu o livro, era metódico em tudo. Viu, sem observar, quando três crianças entraram no local. Uma menina de uns cinco anos, e dois meninos de sete e nove anos, respectivamente. A aparência física indicava que fossem irmãos, mas as roupas sujas e encardidas com que estavam vestidos confirmavam a suspeita. Os meninos estavam descalços e carregavam um pequeno saco com poucas moedas.
Uma senhora que estava em companhia da filha e parecia ter vindo de um culto ou de uma missa, pois carregava sua imponente bíblia, falou para a menina:
- Filha, esconda o celular.
Outro senhor, que estava na fila do caixa, comentou com a funcionária do local:
- Vocês deveriam controlar melhor quem frequenta o ambiente, nestes dias deixo de vir aqui.
As atitudes provocaram repulsa no professor, mas manteve seu inabalável silêncio com terceiros.
O menino mais velho se dirigiu ao balcão e começou a olhar os bolos.
- Moça, quanto custa uma fatia de bolo? – perguntou o garoto -.
- A mais barata custa quinze reais, é caro pra vocês. Responde com certo desdém a funcionária.
Os dois irmãos mais velhos começaram a contar as moedas que tinham, mas não tinham o dinheiro suficiente.
- Quanto deu Jesus? Perguntou o menino do meio.
- Só temos três e trinta, respondeu o mais velho de nome Pedro.
- Maria, não vai dar, disse Pedro para a irmã, que tinha lágrimas nos olhos.
Jorge observava, mas não interferia, queria entender o que ocorria e estudar a reação dos meninos.
Quando estes começaram a sair do estabelecimento, Jorge, que só falava o necessário e obrigatório, sentiu um desejo de interferir e ajudar. Não era de seu feitio, mas alguma coisa ocorreu. Lembrou de toda a história de Victor Hugo em “Os Miseráveis”. E pensou, não, Jean Valjean não irá sofrer tanto por causa de um pedaço de pão...
- Meninos, vocês estão com fome, perguntou de forma tímida.
- Não, senhor, saímos da escola faz pouco tempo. Lá tem merenda, respondeu Jesus.
- Mas se não estão com fome, por que querem gastar o pouco dinheiro de vocês com algo tão caro?
- Por nada não moço, desculpa se a gente incomodou, falou Pedro.
Aquilo machucou Jorge.
- Perdão, meninos, vocês não me incomodaram, apenas fiquei curioso. Se aceitarem, gostaria de pagar uma fatia de bolo para cada um de vocês.
Eles olharam de forma desconfiada.
- Carece não senhor, mas obrigado, falou Pedro.
- Por favor, aceitem, vocês fariam o meu dia menos triste, disse Jorge.
- A gente aceita, mas só queremos uma fatia.
- Por que não aceitam uma fatia para cada um?
- É só uma fatia para Maria, disse Jesus.
Jorge não quis discutir com as crianças e pediu que a atendente fornecesse a fatia de bolo aos meninos, o que foi feito por ela de “cara feia”.
Pediu aos meninos que sentassem à mesa, mas estes preferiram um banco que tinha fora do estabelecimento. Ficou observando quando eles saíram e colocaram o prato descartável com a fatia do bolo em cima daquele banco. Jesus tirou uma vela e a colocou na fatia. Pedro pegou uma caixa de fósforo e a acendeu. Os dois então começaram a cantar parabéns para a irmã que fazia aniversário naquele dia. Maria chorava. Jorge, que não se lembrava mais o que era uma lágrima, soluçou copiosamente e foi abraçar as três crianças...
Jorge voltou para casa neste dia de um jeito muito diferente. O acontecimento, que lhe fez verter água nas faces, abriu um desejo imensurável de fazer alguém sorrir.
A dor é a cor de um sentimento, e ela só se cura com lágrimas. Como a cor, precisa do sol e de um novo amanhecer.