Relatório da professora de artes
Alguns cordéis de minha autoria foram parar nas mãos de uma professora de artes, profissional responsável pelo aprimoramento e expansão da criatividade e sensibilidade dos alunos. Ela mora em Santa Rita, grande João Pessoa, e trabalha numa escola pública de periferia. Geralmente, professores de arte são vistos pelos próprios colegas apenas como auxiliares para cortar papel e fazer decoração de festinhas temáticas, tipo São João e Dia das Mães. Não sei como essa professora é avaliada pelos amigos de profissão e pelo corpo discente. O que fiquei sabendo é que a mestra foi convocada para ministrar seus saberes teóricos e práticos em missão de preencher o tempo em uma aula cujo professor não compareceu. Nada tendo preparado para essa atribuição urgente de comandar uma turma “difícil”, levou meus cordéis e mandou a galera ler e, quem quisesse, declamar os folhetos.
O destaque da turma é um rapaz que a professora ficava pasma de ter ainda aquela figura frequentando aula. O garoto tinha tudo para seguir carreira no submundo da malandragem da área, mas é desse tipo de gente que abriga um artista dentro de si. Em certos momentos, esse artista escondido prospera e arranca o dom que subsiste arraigado na sua cabeça, e ele sempre tem a sua professora como cúmplice e incentivadora. Pois foi esse aluno que mais se entusiasmou com a poesia do cordel. Leu meus folhetos com o bem-estar daquelas coisas que são boas e simples, e voltou no dia seguinte com seu próprio cordel, devidamente registrado na página de habilidades do relatório do aluno. Foi aí que a professora estendeu aquele famoso olhar inter e transdisciplinar para o restante da turma “difícil” e percebeu que o histórico escolar daquelas jovens criaturas merecia uma sacudidela, e o cordel poderia muito bem servir como excelente recurso pedagógico.
Fiquei sabendo por acaso dessa aventura dos meus cordéis na sala de aula em uma comunidade que mostra uma realidade complicada. A garotada brincando com as palavras, se deliciando com o ritmo e a musicalidade do cordel e, quem sabe, meus versos mudando de alguma forma o trajeto daquelas vidas em formação, isso disparou um contentamento e ufania com relação ao meu trabalho que me deleitou na hora, atravessou a semana e veio cair nesta crônica.
Outra professora, minha amiga Claudete Gomes, parceira nas artes cênicas e radiofônicas, começou a espalhar cordel nas suas salas de aula há bastante tempo. Meus cordéis também frequentam as mentes de jovens e adultos orientados por Claudete, ela mesma cordelista e operante em um projeto chamado Canta Cordel, buscando “valorizar os elementos da literatura de cordel e seus fazedores, componentes de uma das mais tradicionais formas de narrativa do Nordeste brasileiro e propagadora das tradições desta região”. Esta linguagem, que é reconhecida como Patrimônio Cultural Brasileiro desde 2018, é tema do projeto que já passou por Itabaiana (PB), São José do Egito (PE) e deve circular ainda por duas cidades do Maranhão. O projeto adquiriu sessenta cordéis de minha autoria para fins de leitura e exposição nos ambientes onde o “Encanta cordel” montar sua barraca. Saber que meus folhetos são compartilhados por jovens e adultos nas quebradas da Paraíba, Pernambuco e Maranhão, através de uma galera deslumbrantemente disposta a dar visibilidade à literatura de cordel, me deixa assim com uma certa presunção um tantinho pedante por contribuir minimamente na intensa e interminável jornada do cordel brasileiro pelas consciências das futuras gerações. Nessas ocasiões, faço meu o lema de Maiakovski: “Iluminar sempre, como a vela, até o último alento”.
Por falar em poeta, cito mais um, o francês Gaston Bachelard: “o amor é o contato de duas poesias”. Um homem perplexo, mas orientado pela beleza da cultura de sua gente, escreve narrativas que, em algum distante momento do porvir, será lida por outra criatura devidamente adestrada para o sonho e o encanto das palavras, pronto! Dar-se-á o encontro de duas poesias e a construção do afeiçoamento espiritual, como cogitou Bachelard.