ABRINDO O JOGO
Às vezes me pergunto o que sou de fato. Qual é essa criatura que se passa por mim todas horas. Tento vasculhar alguns cantos dentro de mim e deparo com imensas portas fechadas. Tento abri-las, até com certa veemência, e percebo que são impassíveis, não dão a menor bola para as minhas inquietações, que perturbam um bocado. Não sei o que sou, admitir essa verdade é cruel, pois denota certa inconsequência, talvez alguma displicência infantil. Esconder de mim mesmo a minha bula torna-me um estranho vagando por esses chãos, aos quais nunca serei apresentado pra valer, Não acredito ser uma exceção à regra, no fundo todos mal se conhecem. Somos poços de mistérios, envoltos num mar de interrogação sem fim. Devo ter trunfos e chagas escondidas em alguma gaveta, devo dispor de armas, ciladas, becos e até âncoras guardadas sabe-lá-Deus-onde e que só esperam a deixa pra subir ao palco e dar seu recado, estrear seu show. Um dia vou morrer e talvez nessa hora todo aquele arsenal secreto venha à tona, uníssono, quem sabe pra pedir abrigo, ou perdão. Daí vou poder desnudar todas aquelas coisas esquisitas, sacudi-las, virá-las do avesso e flagrar todas suas faces, todos seus respingos, todas suas sombras. Até essa hora, vou convivendo com dúvidas eternas, que servem como escudo, como unguento, como desculpa, como rebarba. E nada mais.