Um último ato de bravura
Para meus filhos Hermom e Robina. Para Milly, Lolinho e sua prole. E em memória de Chinho e Catulinho. E também em memória de Sultão e Douglas, amigos inesquecíveis da minha infância.
“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo / Perdeste o senso! / (...) E eu vos direi: / Amai para entendê-las! / Pois só quem ama pode ter ouvido / Capaz de ouvir e de entender estrelas”. (Olavo Bilac, Via Láctea)
No enterro de nosso gato Chinho, presentes minha filha e meu filho, ainda crianças, eu falei que ele se fora mas nos deixava lições valiosas e saudades imorredouras.
Os animais às vezes são como as pessoas e vice-versa.
Aquele bichano, mesmo tendo sido colhido na rua, sem pedigree, nunca nos deu trabalho e sim muitas alegrias, fazendo parte de nossas vidas, destilando, durante sua passagem terrena, uma docilidade que nunca será esquecida, até (como disse minha filha) ir morar com as estrelas. Dizia eu na despedida que muitas pessoas de origem obscura, ou nascidas em condições adversas, conseguem se superar tornando-se virtuoses. Agora, parafraseando Bilac, com relação aos animais, eu digo que só quem ama pode compreendê-los, assim como quem pode ouvir estrelas.
Numa noite dessas ao telefone com meu filho ele me contou emocionado um caso ocorrido à tarde.
Um cachorro de rua tentava atravessar a avenida principal da cidade, constituída de quatro pistas. Já transpusera uma, quando foi atropelado por um veículo, mas, com dificuldades, continuou seu percurso. Meu filho passou a torcer silenciosamente para que o cão se safasse naquela via movimentadíssima. E já na terceira pista, quando tentava transpô-la, um caminhão de carga vinha em alta velocidade em direção ao anônimo cão de rua, que era branco, magro, depauperado e idade indefinida. E ele se vendo de frente para o perigo, como estava ferido e não podia apressar seu penoso cambalear quase arrastando-se, evidentemente sentindo as dores e a fraqueza advinda da pancada sofrida segundos antes, teve uma atitude inusitada, o último ato de sua vida canina. Arreganhando os dentes ele latiu, tentando intimidar o monstro de ferro sobre patas de borracha em alta aceleração vindo ao seu encontro.
Naquele momento não era mais o uivo lamentoso, talvez emitido durante sua vida nas noites de lua cheia. Desta vez, o ganido veio raivoso e desesperado.
Se fosse um cão cinematográfico ou de desenho animado, naquelas situações em que tudo é possível, o carro, intimidado pelos latidos, iria estacar, ou estancar mesmo, curvando-se diante dos dentes arreganhados daquela patética criatura. Mas isso não aconteceu.
O que meu filho viu, para sua lástima e pesar, foi o carro destroçando o pequeno, maltratado, frágil e audaz animal com seus pedaços ensanguentados espalhados na rua como um mártir. Findava ali o último ciclo de mais um cão de rua. E seu derradeiro ato foi de coragem ao achar que seus latidos o livrariam da morte iminente.
Após essa narrativa eu e meu filho passamos aos devaneios. Procuramos extrair algo daquela grotesca cena. Meu filho achou tratar-se de um enigma a ser decifrado no transcurso de sua vida terrena, não sabendo quando.
Lembrei de meu singelo discurso nas despedidas de nosso gatinho, de que somos parecidos com os animais e eles conosco. Uma das lições que esse ato nos trouxe à reflexão é que aqueles que vivem nas ruas, ficam a mercê de perigos constantes, tornando-se presas fáceis.
A cena de desespero daquele animal ficará eternizada na memória de meu filho.
Poderia aquele cão morrer de velhice, cego, mas, sendo de rua, não daria nenhum exemplo de vida a ninguém. Morreria sem chamar atenção. Ele poderia ter aceito resignado a morte iminente, mas foi valente e nobre enfrentando-a.
Sei que cada vez que voltarmos ao assunto algo aflorará, como hoje, quando me dei conta de que não é preciso somente a coragem para se vencer os obstáculos. Para nós humanos há uma diferença, a inteligência.
Não basta a nós gritar para intimidar o inimigo poderoso ou vencer as dificuldades extremas.
E também, além da inteligência, é preciso pertinácia, dedicação e sacrifício.
E ao sentirmos que poderemos ser destroçados, a saída é recuar, para depois prosseguir nossa trajetória. Senão, restará latir para tentar inutilmente intimidar as dificuldades. Só a vontade e o grito não adiantam.
Reflita quem quiser.
Castanhal, 07/10/99.