Minimalismo x consumismo (*)
(*) Nem tudo são flores no Planeta Jardim - Crônicas de um futuro possível
APIABÁ (20.8 S, 47.5 O), 04/08/3.322
No almoço de hoje, sentei-me à mesa com um professor da Fraternidade do Cubo, que teceu alguns intrigantes comentários sobre a cultura do povo tecnológico, mas não consigo dar a ele plena razão.
Ele começou dizendo que se preocupa com a possibilidade de as comunidades da Era Atual começarem a comprar bens de consumo dos povos tecnológicos, estabelecendo vínculos comerciais que acabem comprometendo nossa tão cara e essencial mentalidade do minimalismo econômico. Os adidos e cônsules dos povos tecnológicos procuram ser extremamente sedutores ao ofertarem “soluções inteligentes para os problemas cotidianos”, e oferecem todo tipo de geringonças que mais demandam cuidados e esforço do que reais benefícios.
Não acredito nesse contágio cultural, porque o costume dos tecnológicos de produzir geringonças para suprir cada mínima necessidade cotidiana os leva à exploração de recursos naturais além do necessário para sustentar a vida e exige uma vida de trabalho estressante. O consumismo e suas “soluções tecnológicas” custam caro demais em relação aos benefícios que proporcionam. Tanto isso é verdade que nos últimos cinco séculos aumenta incessantemente a migração dos povos tecnológicos para as comunidades da Era Atual, e é quase zero a migração de nossos cidadãos para os continentes dos povos tecnológicos.
A conseqüência é que os povos tecnológicos estão perdendo sua “força de trabalho”, e por isso seus governantes se esforçam para atrair mais pessoas para os seus continentes, a fim de manter seu incessante crescimento econômico. Mas a vida em meio a máquinas e veículos de todo tipo, mesmo nas cidades orbitais torna-se menos atraente até para as almas mais curiosas. Mesmo depois de superado o canibalismo econômico e social típico das sociedades "modernas" dos séculos XVIII a XXI as “soluções tecnológicas” já não parecem tão interessantes. O custo da tecnocracia é alto em relação aos benefícios.
Meu novo companheiro de almoço disse que “Não me incomodaria se muitas de nossas almas se deixem seduzir pelos tecnológicos e migrassem para o continente deles. Todos somos livres e os povos tecnológicos são nossos amigos há séculos. O que me preocupa é que eles consigam seduzir nossas crianças, incutindo nelas o gosto pelas geringonças e pela cultura ‘moderna’. Seria um retrocesso lastimável”.
Não penso como ele. O contágio cultural temido pelo meu amigo não acontecerá tão facilmente, porque nossos ancestrais, quando iniciaram a cultura do minimalismo econômico, tiveram o cuidado do associá-lo à alegria de viver.
No início da Era Atual, por volta do ano 2.100, foi necessário um longo período de assentamento da nossa nova forma de civilização. A Era Moderna havia chegado ao seu limite, com um imbatível sistema de fábricas, meios de transporte, redes de telecomunicação, tecnologias incríveis, sistema financeiro globalizado, transporte aéreo para qualquer parte do planeta, milhões de bens de consumo à disposição, residências que fariam inveja a qualquer marajá, veículos com padrões de conforto, segurança e luxo muito acima de qualquer carruagem dos contos de fadas, uma maravilha se disso não resultasse tanta desigualdade social, violência, criminalidade, doenças psiquiátricas, esgotamento de recursos naturais, poluição do meio ambiente e tantas misérias chamadas hipocritamente de “o preço do progresso”.
A maneira encontrada pelas comunidades cooperativas pioneiras para tornar-se independente dos recursos econômicos e científicos da Era Moderna foi renunciar gradualmente aos bens de consumo, ao chamado “conforto da vida moderna” e às relações de trabalho convencionais, o que para os tecnológicos era uma heresia. “Vocês querem voltar à Idade da Pedra”, diziam os tecnológicos, e de fato queríamos voltar, recomeçar o processo civilizatório, com novos fundamentos. Mas o considerado retrocesso era necessário somente em alguns aspectos econômicos. As melhores conquistas da civilização puderam ser mantidas e aproveitadas, dentre elas o nosso poderoso cérebro, as habilidades manuais e infindáveis conhecimentos acumulados.
Quando surgiram as primeiras comunidades cooperativas rurais, origem das nossas cidades, o novo padrão cultural era vulnerável às idéias modernas. Foi preciso encontrar mecanismos de motivação, clarear as razões para renunciar aos prazeres do consumismo, e inventou-se o minimalismo econômico.
Nunca foi segredo que qualquer ser humano se torna física e mentalmente mais saudável quando tem alegria de viver. Essa foi a grande falha da Era Moderna, esquecer esse princípio basilar da vida. Portanto, a nova civilização não teria sentido se não servisse para proporcionar a cada cidadão a alegria de viver, o que não era tão fácil na civilização da Era Moderna.
O processo histórico de formação das comunidades cooperativas não-tecnológicas foi tão eficiente em criar costumes capazes de proporcionar ampla, geral e irrestrita alegria de viver que mil e cem anos se passaram e ainda não surgiu sistema de vida melhor. As comunidades rurais cooperativas e não-tecnológicas se multiplicaram, se tornaram urbanas, conquistaram três dos cinco continentes, e foram imitadas pelos tecnológicos em muitas coisas, como a erradicação do “gene da violência”, a despoluição do planeta, e o cooperativismo nos sistemas de produção, inclusive nas cidades orbitais.
Eles apenas continuam dando prioridade ao “conforto e segurança”, enquanto nós damos prioridade à resistência física e mental.
A nossa civilização tornou o planeta viável para vinte bilhões de almas, e ainda sobra espaço, enquanto que o modo de viver dos tecnológicos faz com que caiba no mundo menos de meio bilhão.
Por isso acho pouco que nossos cidadãos se deixem seduzir pelas geringonças tecnológicas, de tão elevado custo.