Dois silêncios em Belém
Não nos restam dúvidas de que as Sagradas Escrituras nos falam tudo o que Deus quis dizer às pessoas de todos os tempos. Compete-nos uma correta e inspirada interpretação para ouvi-lo no nosso tempo histórico, tal como outros ouviram no seu e outros, ainda, ouvirão no deles. Não obstante, um fato é sempre contemporâneo: há silêncios nos textos, há espaços cujo mergulho é possível e tende a ser profundo, há diálogos que precisam ser intuídos. São João Crisóstomo, por exemplo, ao escrever sobre a cena em que André apresenta Jesus a Pedro, seu irmão, assim se expressa: É provável que o irmão lhe tenha falado pormenorizadamente mais coisas. Na verdade, os evangelistas sempre narram muitas coisas resumidamente, por razões de brevidade (Hom. 19,1. L.H., Ofício das leituras da Festa de Santo André).
Tendo isto por base, permito-me abrir duas janelas que revelam infinitos diálogos e caminhos escondidos dentro do texto. Trata-se da aventura de José e Maria durante a qual um menino nos foi dado – para usar a feliz expressão do Profeta Isaías (cf. Is 9,5). Lucas diz que eles partiram de Nazaré em direção a Belém, por ser José da descendência de Davi, a fim de se alistarem. Não é uma viagem curta. Contudo, nada se fala sobre o que conversaram ao longo do caminho: eis a primeira janela, o primeiro silêncio. Mais adiante, o evangelista, após descrever a aparição dos anjos aos pastores, que trabalhavam pela região, fala o seguinte: Assim que os anjos os deixaram, em direção ao céu, os pastores disseram entre si: Vamos logo a Belém para ver o que aconteceu... (Lc 2, 15). Aqui também não há diário de bordo dessa caminhada: eis a segunda janela, o segundo silêncio que tanto tem a nos dizer.
O que conversa pelo caminho um casal que está prestes a ter um filho? Que diálogos há entre pessoas simples que acabam de fazer uma experiência surreal, feito os pastores que contemplaram os anjos? Silêncios evangélicos cheios de vida, cheios do Espírito.
De Nazaré a Belém é advento, é tempo de espera, é caminho que mistura expectativa e cansaço. São as estradas que esperam a presença, o rosto, a vida do Deus encarnado. São os passos terrenos que se movem dentro das obrigações humanas – simbolizadas no recenseamento ordenado pelo imperador Augusto – e que acabam encontrando aquilo que nos é dado por Deus, ou seja, o próprio Deus, do nosso tamanho, ao nosso modo, com a nossa carne. Dentro deste trajeto cabe toda a vida humana em suas buscas e desejos. Dentro deste silêncio escondido no texto, dialoga-se com os sonhos, com as esperanças e, no lugar mais improvável, a vida chora o seu existir.
“Vamos logo a Belém para ver o que aconteceu...” Esta jornada, que suspeito mais curta, não é menos intensa. Ultrapassa o limite da simples curiosidade. É a pressa de quem já sabe. É uma resposta de fé e uma atitude proativa. É não mais precisar esperar, pois já se realizou. Contemplar o que aconteceu é o caminho do testemunho diário das coisas de Deus que saboreamos durante a lida. Não mais advento; é Natal e Páscoa, os dois mistérios colados um no outro. É Emaús anunciado – sobre o que vocês estão falando enquanto caminham? No encalço dos pastores, no silêncio desta janela, encontramos o que Deus fez em nós, vemos o que aconteceu com a gente. No primeiro silêncio, um amanhecer, grávido de vida; no segundo, um entardecer, repleto de testemunho. Naquele, a vida nasce; neste, a vida acontece.