O Cotidiano da Maioria dos Brasileiros
Há quinhentos anos, assim como centenas de séculos na história do Ocidente, percorre-se praças e estradas que o vão humanismo toda hora decora. E, no entanto, as favelas e presídios continuam ocupados pela mesma cor, a mesma enxurrada de insultos de homens que saem do catecismo da democracia racial e mulheres impedidas no trabalho de utilizarem seus penteados afros. E muitos gritam: não há racismo no Brasil, é tudo vitimismo, a verdade está na conquista meritocrática.
Mas a história do negro não é sua real vida, é a sua fome. A fome que está em todos nós! A fome por melhor qualidade de vida. A fome em não ser mais carne abatida por policiais. A fome em não ser mais a mulata boazuda que só serve para a cama. A fome de querer vencer o pútrido preconceito. Em mil megatons, os estúpidos discursos políticos dos neocapitães do mato (muitas vezes também são negros) querem reduzir as poucas conquistas desse setor social, desejam minimizar a importância das lutas - de datas como o dia da consciência negra.
Por isso estou do lado certo da história para se contrapor a isso - junto de pessoas como Marielle Franco, Zumbi dos Palmares, Mano Brown, Dandara, Xica da Silva, Milton Santos, João Candido, Marighella, Carolina Maria de Jesus, Francisco José do Nascimento, Luiz Gama e André Rebouças. Gente que sentiu dor quando a nefasta ideologia do embranquecimento preferiu contratar japoneses para trabalharem nas lavouras de café ao invés de oferecerem empregos aos negros locais (eram tachados de tapados, burros demais para esforços braçais – classificações dos os brancos). Gente que cansou em ser bom de bola ao invés de ler tratados científicos em faculdades. Gente que não tolera a fantasia do pacífico convívio entre as etnias e que gostaria de ser apenas escravo da alegria, como cantava Vinicius de Moraes. Haverá data para tal alforria? Humanismo que trucide as novas senzalas?
Os donos do poder mudaram épocas e disfarces sociais: dos navios negreiros para os pestilentos ônibus coletivos, dos pelourinhos para as humildes vielas, dos escravos para os assalariados apolíticos, mas em tudo continua o estereótipo do negrinho, do mulato e do pardo periférico. O negro é o sujeito abjeto-objeto-estereótipo impossibilitado de criar suas próprias estórias. Ser de vidas tortas e indignações vivas ao perceber que a cartilha do racismo sentencia a mesma podridão fixada nas coloniais senzalas.
Em tempos de neomedievalismo social, instante em que um chefe de Estado qualifica pessoas em arrobas de boi, em que racistas se manifestam sem nenhum pudor em estádios, em que os poderosos recebem com novos açoites os braços negros ao retirarem os direitos do operário com a reforma trabalhista, é hora do povo preto pegar a foice e o martelo para cortar os mandonismos, os preconceitos e os privilégios da ignóbil elite. É hora “dos de baixo” se organizarem coletivamente, saírem desse ambiente de carne retalhada, de direitos pela metade e ser uma potente massa que atinja em cheio o coração podre desse país navalhado pelo racismo.
18.11.2019