MENTIR PRA VIVER...
A vida é dádiva que recebemos ao nascer, e, vivê-la, exige lutas constantes, diz o poeta: “a vida é combate, que os fracos abate, que os fortes, os bravos, só pode exaltar” (Gonçalves Dias). Enquanto passo pelo pequeno horto florestal, nas proximidades da Igreja Católica São Paulo Apóstolo, no Renascença, observo que ele, ainda, sobrevive às especulações imobiliárias. Ao abrir os vidros do carro, experimento o cheiro dos eucaliptos, um aroma doce e amadeirado. Oxalá eu pudesse extrair deles o óleo, com os seus benefícios para a saúde. Ao passar pela igreja, ouço as melodias de um violão, e a memória me transporta para outras paisagens, cheiros e sons. Nesse instante, experimento terna lembrança e trago o meu pai para junto de mim. E, ao invés da melancolia, pela lembrança dele e do seu violão, as recordações me remetem à ideia de felicidade, e sugere uma reflexão.
Se fala em felicidade, atualmente, como se pudéssemos comprá-la ou adquiri-la, porque prometida nos livros de autoajuda. Não, não falo dessa felicidade, mas daquela que nasce espontânea, contrariando receitas pensadas por alguém. A felicidade – a ideia que tenho dela nasce de uma experiência interior e que desconstrói quaisquer conceitos. Sendo ela subjetiva, bem como os pensamentos e os sentimentos com os quais travamos constantes lutas, levam-nos a questionar: quem sou eu? Eu me amo? O que me faz bem, o que me faz mal? O que quero para a minha vida?
Hoje, as propagandas e os apelos de consumo provocam em nós um verdadeiro bombardeio e nos tornam reféns da aquisição de bens que nem sempre precisamos, mas que se exibem nas prateleiras, para nos seduzir. Em se tratando das crianças, como ficam as cabeças desses pequeninos, ainda incapazes de perceberem essas armadilhas? Me preocupo quando observo alguns pais e mães, tendo dificuldades para dizer não aos filhos e os enchem de brinquedos, facilmente descartados de valor e significação em suas vidas, porque excesso.
O viver contemporâneo reivindica prazer, agradar, ter... e nos enquadra em padrões, geralmente divulgados pela mídia, principalmente pelas telenovelas. O modismo, outro indicador de padrões de beleza que nem sempre condizem com o sujeito e o seu biotipo, mas quem quer saber disso? Surgem daí perguntas que não calam: como interagir comigo se, não me aceito, se não reconheço as minhas condições e nem sei quem sou? Como entender a mim mesma e traçar metas para a minha vida, se me transformo em produções exteriores e estereotipadas?
Em decorrência, outros questionamentos surgem: por que tanta depressão e tantos suicídios, principalmente entre os jovens? Não sou especialista, mas penso que não aceitar a vida ou pensá-la a partir de motivações exteriores somente, ameaça qualquer existência. E no atual contexto, o que se vende? Um ideal de felicidade plena e eterna, que não existe. Não precisamos ser psicólogos ou psicanalistas para refletir sobre este assunto. Se acessarmos dados da Organização Mundial da Saúde sobre a problemática da depressão, por exemplo, saberemos que ela vai ser a doença mais incapacitante neste século XXI. O suicídio por sua vez, hoje, é a segunda maior causa de morte entre pessoas de 15 aos 29 anos. Por quê? Por algum motivo, parece que a vida se tornou uma carga muito pesada para essas pessoas e elas não conseguem suportar.
Outra questão nos preocupa: a geração de pais e mães que precisam trabalhar para garantir o sustento familiar... para eles, talvez, o dar presente aos filhos, substitua a presença na brincadeira, no convívio, na partilha. Por ventura se esqueceram de como era boa a conquista de um brinquedo ou a fabricação própria dele? A vida não se resume a satisfação plena dos desejos e a aquisição de bens materiais...ela nasce, também, das dores e perdas, dos momentos tristes e das frustrações experimentadas desde o nascimento, quando o choro nem sempre é compreendido e atendido. Sair do espaço emocional e afetivo, e se deixar habitar, apenas pelo racional e material pode roubar a essência humana. Não podemos nos deixar seduzir por imagens de falsa beleza e de falsos valores, como o consumismo, a vaidade excessiva e as aparências. Mais do que seres racionais, somos seres de sentimentos, e, às vezes, com imensas dificuldades de elaborar e expressar o que sentimos e o que vivemos.
Mais do que nunca, se faz necessário pensar sobre o resgate da vida e do valor dela, por extensão do viver. Este é, a meu ver, o mais urgente e principal desafio da sociedade hodierna. Isso não tem a ver com perseguir um projeto de felicidade, que não pode ser planejado facilmente, até porque não existe. Metas a serem cumpridas, sim, podem ser traçadas, mas um projeto de felicidade plena, não. Segundo a filósofa Viviane Mosé, “é preciso que a simples experiência da vida, em si mesma, seja capaz de nos seduzir”.
Nesse sentido, pensemos na colaboração que as artes podem proporcionar, principalmente, a literatura – porta de entrada fundamental a qualquer pessoa no exercício do pensar e do sentir afetivos. Ela nos ensina a viver, pois nos aproxima dos nossos sentidos mais profundos, e nos possibilita maior contato com a imaginação, quando dialogamos com a plêiade de personagens que desfilam nas obras literárias. Eles nos representam e, também, nos apresentam o outro e um mundo, ainda que ficcionalizados. Não é somente a literatura que nos ensina, também a filosofia e aqui penso com a Viviane Mosé, segundo Nietzsche e os desafios da vida contemporânea. Esse texto nos faz pensar sobre as dores e as delícias do existir. Segundo o filósofo, “a sociedade criou técnicas de como não ver, não sentir e não viver, para não sofrer, ou seja, o que move a máquina civilizatória é cada vez mais a promessa de felicidade”. Disso, pois, resulta a enxurrada de informações e apelos ao consumo hedonista.
Se a felicidade for pensada como ideia de um lugar sem conflitos, nem sofrimentos, construímos um mito ausente de simbologias. Viviane Mosé assim expressa: “sofrimento e contentamento são afetos distintos e necessários em uma porção de vida e não são opostos. Eliminar o sofrimento é o mesmo que eliminar a vida”. Então, aceitar a vida por completa, recebendo dela os punhados de dores e alegrias, é ser consciente das fragilidades e incompletudes próprias da condição humana! Mais do que nunca, viver bem exige enfrentar os desafios sociais e contemporâneos!
Camila Nascimento.
São Luís, maio de 2019.