UM PAR DE SAPATOS NOVOS

Na época em que eu era criança tinha medo de quase tudo. A situação era tão delicada, que meu pai decidiu interferir: Ele disse que, a cada vez que eu sentisse medo, deveria enfrentar a situação. Caso contrário eu jamais venceria meus medos. Eu confiava muito no meu pai e decidi seguir seu conselho. Graças a tal ensinamento consegui superar meus medos da infância e hoje adulta, ainda ponho o ensinamento em prática a cada vez que surge um imprevisto na minha vida e eu me vejo com medo.

Um dos maiores medos de que me lembro, ocorreu quando eu morava em Baixa-Verde, minha cidade de nascimento e da qual guardo boas recordações. Eu acabara de ganhar um par de sapatos novos, o que me encheu de alegria. Eu devia ter uns 11 anos de idade e estes sapatos novos iam completar meu uniforme, para o Colégio João XXIII, onde eu iria estudar.

O Colégio, obra do saudoso Monsenhor Lucena Dias, pároco da cidade, ficava bem distante da casa da minha avó. Naquela época os estudantes não contavam com ônibus para seu deslocamento, assim como não dispunham de livros e fardamentos doados pelo governo. Todos os acessórios que o estudante necessitava, era bancando pela família diretamente. Nada vinha através do pagamento de impostos. Especialmente quando se tratava de uma escola particular, como o Colégio João XXIII.

Eu estava fazendo a 6ª série e o Colégio João XXIII funcionava à noite para o Fundamental Maior, de modo que eu passei a estudar à noite. As aulas eram iniciadas às 18:30h e se estendiam até às 21:30h. Eu caminhava até o Colégio na companhia de umas amigas que moravam depois da casa da minha avó, na antiga Rua Nova.

No dia em que eu estreava meus sapatos novos cheia de orgulho, minhas amigas decidiram não ir ao Colégio, de modo que eu tive que fazer todo o percurso sozinha. Ainda estava assistindo as aulas quando caiu uma chuva torrencial que não passou mesmo com o final das aulas.

Ao sair do Colégio me dei conta de que não havia luz elétrica na rua e eu me vi sozinha, dentro da noite escura em que chovia e eu precisava fazer um longo percurso até minha casa. Respirei fundo e tentei não deixar o pânico tomar de mim. Passei pelo antigo mercado localizado na Praça Central da cidade e iniciei a caminhada pela Rua Nova, que naquele momento me pareceu longa demais.

Quando cheguei em frente à Cisaf – uma antiga fábrica de beneficiamento de cisal, a calçada estava cheia de poças d’água. Meu medo da escuridão era enorme e, à medida em que eu caminhava, escutava o barulho de passos de alguém que vinha caminhando atrás de mim. Eu parava, olhava para trás e não via ninguém, enquanto o medo tomava conta de mim.

Senti-me um pouco aliviada quando percebi que a mercearia do Senhor Cícero Lucas estava aberta e mesmo distante, eu conseguia perceber que havia um facho de luz vinda de um lampião. Isto me deu um pouco de alívio. Percebia que quando eu iniciava minha caminhada, a pessoa que eu acreditava vir atrás de mim também caminhava e quando eu parava para olhar, a pessoa também parava. Quando eu apressava o passo, a pessoa fazia o mesmo e o meu medo aumentava.

Eu procurei caminhar o mais rápido que podia, tentando esquecer os passos da pessoa atrás de mim, até que finalmente cheguei à casa da minha avó. Só então percebi que os passos que acreditava ser de alguém caminhando atrás de mim, era o barulho que meus sapatos novos faziam com o atrito na água espalhada nas calçadas.

Ao entrar em casa encontrei minha família reunida na sala conversando, como era costume na época, então eu me senti profundamente aliviada e protegida para contar o episódio passado. Meu pai reforçou aquilo que havia me dito sobre sentir medo, enquanto meus tios apenas riam da minha desdita.