PELA MANHÃ, CEDINHO
Pela manhã, cedinho, sob a luz difusa de antes do sol aparecer, ouviam-se os passos cadenciados do cavalo puxando a carroça do leite e o tilintar das garrafas que o leiteiro distribuía pelas portas dos fregueses ao mesmo tempo em que recolhia as garrafas do dia anterior.
Logo após era o entregador dos pães encomendados na véspera, deixando-os nas sacolas de pano colocadas em locais livres das intempéries. A carroça, comprida e de pouca altura era silenciosa, pois a buzina, presa no gradil da tampa, só funcionava nas entregas da tarde quando faziam-se as encomendas para o dia seguinte e os valores devidos eram pagos ou, muitas vezes, anotados na caderneta do fiado para acerto posterior.
Pouco tempo depois, aparecia o verdureiro trazendo no calão aos ombros, os tripés com as peneiras abarrotadas de hortaliças e cheiros verdes comuns ou encomendas especiais de ervas com fins terapêuticos, as de consumo sazonal ou em festas típicas da região.
De tarde, em dias alternados, passava o homem do miúdo, com as vísceras de bois abatidos pela manhã.
O mascateiro, vendia cosméticos, aviamentos, passamanarias, agulhas, linhas, carretilhas e tesouras para costuras e bordados, espelhos, pentes, cortadores de unha, cadernetas para anotações, cadernos de desenho, cartilhas de ABC, tabuadas, réguas lápis comum ou de cor, romances, revistas de moda, óleo e graxa para sapato ou para uso geral... tudo devidamente acondicionado na carrocinha multicolorida. Se por acaso ele não tivesse o desejado na ocasião, aceitava a encomenda para trazer na próxima visita.
Esporadicamente vendiam-se artefatos de cerâmica, panelas, cuscuzeiras, potes, jarras, quartinhas, alguidar, cofrinhos em forma de porco, panelinhas de brinquedo, bebedouros para galinhas e, por falar em galinhas, essas eram transportadas por cavalos, em dois garajaus presos nas laterais, com o encarregado da venda, sentado entre eles e nunca descia para fazer a venda, porque do chão, era impossível alcançar o que havia sido pedido.
Uma vez por semana, na feira livre, era a vez de comprar farinha de mandioca, carne e banha de porco, cabras e ovelhas vivas ou abatidas, aves vivas, frutos do mar frescos ou salgados, carne seca, embutidos, cereais, artefatos de couro, móveis para copa/cozinha, etc.
Mas, felizmente, o tempo passou e tudo isso ficou na história das cidades grandes ou pequenas, dos bairros afastados e na memória de quem viveu esses tempos.
O poder público estabeleceu normas severas para a produção e comercialização de produtos alimentares, a vigilância sanitária (nem sempre eficiente) acabou com os problemas relacionados com as zoonoses e esses trabalhadores anônimos, facilitadores da vida das donas de casa, deram lugar aos supermercados, às lojas de departamentos que, como no passado, disponibilizam entregar nas residências (delivery para ser modernoso) as compras feitas através de sites.
Limpeza, praticidade, eficiência, mas tudo isso sem o charme d’antanho...
Glossário:
Carroça do leite = semelhante à biga romana
Tripé = estrutura feita com ripas de madeira, escalonando peneiras de diversos tamanhos, semelhante às atuais fruteiras industrializadas