MEU VOO FINAL
Quero voar, não naquele voar surrado, compelido, mas num voar esgarçado, voraz, soturno. Do tipo que escora as súbitas entonações e dá guarida à solidão. Voar esguio, de sangue aveludado, de voz parruda. Que seja um voar saciado, pouco ludibriado pelos risos sagazes do querer-bem, pouco afeito às guloseimas proibidas da alma, daquelas que engolimos com semente e tudo, mesmo tendo pele estranha e alvissareira. Voar robusto, debandado de mim, capaz de entorpecer ímpetos falidos, tristes de toada e destemidos de fé. Voar que seja imã sedutor, esbanjando alegorias que ninguém tenha untado antes. Um voar inebriado, quem sabe cabisbaixo, quem sabe intruso nessa ovulação abstrata. Que seja voar dos voares, de todos eles, sem escalar protagonistas, sem realçar pedaços de fronha respingados de paixão. Voar amigo, dono de tudo, eco transeunte, mesmice atroz, quem sabe atriz. Mas não: me incumbiram de recitar versos tortos e mal vestidos, atolados de poréns e senões. Lá fui eu catar nesse voar a minha réplica, algo que ousara imergir nos trôpegos galopes da dor. Algo que voasse sem pedir perdão e nem alforria. Algo que me fizesse gente de novo - seja isso o que fosse. Então, voei. Aprumei minhas asas, meu puído e inflamado bocejar, e fui à luta, restaurando um voo cariado, talvez até acariciado. Pois bem: voei no meu sonho de menino imberbe, incauto e inodoro. Busquei antídotos e me deparei com reis e dragões amotinados mas, por incrível que pareça, estupidamente felizes, quão felizes se pode ser. Então morri, cravejando o voo final com pitadas de alecrim e manjericão. Que soem as trombetas d'além mar, que soem os suores perdidos nessa alma corrida, nesse cantar estrelado, Morri pra voar nas ancas eternas de quem fosse, fistulado e atarracado nessas palavras que não dizem nada e, justamente assim, dizem tudo.