Crônica da vida adulta

Acordei no sábado, 06h da manhã, para receber uma amiga que vinha de São Paulo.

Desliguei o despertador e notei uma única chamada não atendida – a minha prima, na noite do dia anterior. Nós só ligamos uma para a outra quando esquecemos a chave de casa. Automaticamente, ignorei a notificação. Era tarde demais. Ela devia estar dormindo, do lado de dentro, segura.

Recebi minha amiga, servi o café, ela foi descansar, assisti uma aula e chegaram as 10h.

Fui ao mercado comprar o que faltava para o almoço e comecei a ensaiar na cabeça o cronograma do dia: mais uma aula, almoçar, me arrumar, evento às 14h, fazer a cobertura, (talvez) sair para comer, voltar para casa, dormir... Absorta em pensamentos (como em sempre), segui o meu caminho. Nele, trombei com a minha prima, de os olhos arregalados, dizendo que precisava me contar uma coisa. Estragou o ensaio. Interrompeu o cronograma.

Na noite anterior, no horário em que nós geralmente chegamos juntas do trabalho e da faculdade, ela estava sozinha porque eu não havia saído. A nossa rua não tem um poste decente de iluminação - e aquele era dos dias de breu. Nossa vida vai sempre até bem tarde, voltamos quase que no último ônibus disponível. Estão sempre preocupados com a gente. E então, enquanto ela encaminhava em direção ao portão procurando a chave, como usualmente fazia, ouviu passos subindo a rua apressados atrás dela e sentiu o coração estremecer. Não achava a chave.

Mas o que vinha não era um homem – toda mulher, quando ouve uma história dessas, inevitavelmente pensa em um homem vindo no escuro em sua direção enquanto ela está completamente indefesa – era o polo oposto: uma mulher ensanguentada. O homem, no caso, já tinha vindo.

A moça disse à ela que estava fugindo do marido, porque havia apanhado bastante e estava com medo de morrer. Na fuga, deixou em casa duas filhas. Disse também que vinha de longe, do nordeste, morava ali fazia pouco menos de um mês e não tinha muito para onde correr, não sabia onde ir. As duas tremiam. Chamaram a polícia – na verdade, tentaram chamar.

Minha prima disse ter feito seis chamadas. Nenhuma delas foi atendida. A sétima chamada foi para mim – que no décimo segundo sono, também não atendi.

No calor das emoções e dos desesperos, o choque da minha prima e o sangue da mulher, ela voltou a correr noite à fora em busca de alguém que pudesse ajudá-la, sem que se pudesse contê-la. Passada a adrenalina, notou-se que a moça tinha dito tudo, menos o nome. Sabíamos o motivo do seu desespero, conhecíamos o teor da violência que a vinha vitimando, sabíamos que ela tinha necessidade de ajuda mas não tínhamos nenhuma ideia de quem ela era. A vida real soa metafórica demais às vezes: é sempre assim. Nem quando as estatísticas se tornam reais diante dos nossos olhos, elas ganham identidade.

Eu senti o coração disparar, o sangue ferver e a energia subir no momento em que ela terminou a história. Em dois minutos, eu estava no mercado contando uma desculpa besta e assuntando para ver se conseguia o endereço da tal mulher e alguma característica qualquer que permitisse acessá-la. Havia aprendido em um dos meus longos estágios de Delegacia que nessas horas, não se faz alarde. Fazer a fofoca ganhar os holofotes é acuar a vítima ainda mais, violentá-la em um nível ainda mais profundo, formar o quórum do julgamento popular (que nunca é direcionado ao agressor) e produzir o atestado social de que ninguém se importa com a dor, mas com a história. “Primeiro você resolve, depois você conta”.

Eu sabia que ela não devia morar muito longe, que vinha do nordeste, que era mãe e que devia ter uns trinta anos. Em dez minutos, com a ajuda da moça do balcão e de alguns clientes que ela parou, eu sabia o endereço, a idade das filhas, a cidade de onde vinha e o nome do marido – só não sabia o nome dela. Mas na minha cabeça, tinha o suficiente para pelo menos começar uma investigação. Pelo amor de Deus... Eu tinha um endereço! E sabia que o marido era alcoólatra, o bar onde bebia e o horário em que costumava ficar lá. Não eu começaria a investigação, no caso: a polícia, que deveria ter atendido uma das seis chamadas.

Então eu fiz a sétima ligação, sentada no portão de casa com as sacolas na mão e coração estremecido. O Policial que me atendeu pronunciou a frase “Mais uma família do nordeste?!” com uma agilidade mais notável que a recusa na noite anterior. O nó se formou na minha garganta com uma agilidade também elogiável. Logo depois, o pediu para entrar em contato caso houvesse algum elemento concreto. A notícia de uma mulher perdida e sangrando enquanto se tem duas meninas em casa (e o endereço da casa) com um marido alcoólatra soa bastante abstrata aos meus ouvidos também. Doeu.

Doeu bastante, mas eu não esperava menos. Não é a primeira vez. A crônica da vida adulta, no fim das contas, consiste em reconhecer que a vida não é como nos filmes e o sofrimento está à espreita, às portas de todos, diante da inevitabilidade da realidade: ninguém se importa. Ao menos, ninguém que deveria.

Até aí, eram 11h.

Fiz algumas ligações – alguns contatos no mundo jurídico, uma ONG, umas amigas... Ninguém pôde fazer nada. Fiz (mais) uma oração. Jesus se importa. Eu sei que se importa – e é isso o que me salva todos os dias, todas as vezes, em todos os casos. Retomei o ensaio. Dancei o espetáculo. Segui o cronograma.

Mas antes, voltei ao mercadinho e contei para moça do balcão a razão das minhas perguntas. Senti que deveria. Vi a compaixão nascer nos olhos dela. Me prometeu que se a visse de novo, avisaria, diria a ela para procurar ajuda. No fim das contas, fomos eu, a minha prima e a moça do balcão contra o mundo. Intencionalmente, ainda não te contei o nome de nenhuma de nós três. Não faço ideia do que vai acontecer se a moça ensanguentada aparecer de novo – mas quem sabe não tem como ajudar?

O dia correu, como se a dinâmica cotidiana não pudesse se recusasse à ser ofendida por esse tipo de coisa.

Bati na cama às 2h da manhã com a memória que eu nem tenho de uma mulher correndo na rua escura, com o rosto sangrando... a minha rua, perto de mim, enquanto eu dormia tranquila.

E ela ainda não tem um nome.