O PAI DO ADULTO
Todo adulto veio de uma infância. Não há adultos sem infância. A infância pode ter feliz ou não, alegre ou triste, boa ou ruim, mas todos tivemos infância, gostemos dela ou não.
Todo adulto teve antes uma infância. Alguns ainda não conseguiram sair dela. Outros estão a anos-luz dela. Existe até crianças que não chegam a se tornar adultas. Mas uma coisa é certa: toda origem humana individual é infantil.
É na infância que vemos pela primeira vez o mundo, e sobre ele caminhamos os iniciantes passos. É na infância que conhecemos nossos antecedentes adultos. É na infância que inauguramos nossa personalidade, e sobre ela viveremos a vida adulta que mais adiante nos espera. Como diz o filósofo André Comte-Sponville. “ninguém se cura da própria infância”.
Na infância a criança reinventa o mundo dos adultos. Os animais falam, as fadas voam, Papai-Noel dá presentes de graça, os sótãos são mal-assombrados, o melhor amigo é imaginário, as árvores nos escutam, e há tesouros de piratas em algum lugar na praia. Na infância os quintais são imensos e até uma poça d’água pode ser um fundo mar. Na infância os adultos são gigantes que falam outras linguagens.
É na infância que as crenças grudam na gente como tatuagens mentais. É lá que sentimos todos os sentimentos do mundo. É quando pela primeira vez amamos e odiamos, é quando vivenciamos o ciúme, a amizade, a esperança, a inveja, o medo, a vergonha, a culpa, a alegria, a tristeza, a frustração, a mágoa. Não há afeto que nasce quando nos tornamos adultos. Toda nossa afetividade tem sua raiz acriançada.
Crianças sabem brincar e ser livres mesmo quando vigiadas e controladas. Ninguém segura o pensamento e a criatividade infantil. A criança não sabe, mas ela é de nascença revolucionária, e quando quer pinta o sete e bota tudo de cabeça para baixo. Por isso, de vez em quando, a meninice necessita de adultos para que não incendei a casa.
Triste do adulto que se tornou somente adulto. Adulto demais é muito chato, sisudo, circunspecto, muito cauteloso e excessivamente ponderado. A vida é uma coisa muita séria para ser levada tão a sério.
A capacidade de se alegrar e de se divertir, a ludicidade, a inventividade, o uso da imaginação criativa, a abertura ao novo, a curiosidade e a fecundidade psíquica são características da mente em suas qualidades originais e precípuas. Tais qualidades são naturais e inatas, presente desde o início da vida (infância). Não é porque crescemos, amadurecemos e tornamo-nos adultos que elas deixam de existir ou desaparecem. Elas são atributos da essência psíquica, base de onde edificarmos o ser que ora somos.
No latim temos a expressão “puer aeternus” (a eterna criança). Na Psicologia Junguiana o “puer aeternus” representa um arquétipo, sendo, portanto, nos dizeres de Carl Jung, um dos “elementos estruturais primordiais da psique humana”.
A relação no psiquismo do humano adulto entre a mente com suas essências “puer” e a mente amadurecida e adultificada, quando bem integrada, permite-nos ser mais capazes de enfrentar as intempéries existenciais de maneira melhor criativa, resiliente e vigorosa. Trata-se, pois, de uma mente que consegue dialogar com suas dimensões internas de um jeito a lhe ampliar seu próprio crescimento como sujeito e pessoa. Ou como bem definiu o filósofo e poeta francês Gaston de Bachelard, “oramos no presente com nossa personalidade completa. É somente aí, por ele e nele, que temos a sensação de existência. E há uma identidade absoluta entre o sentimento do presente e o sentimento da vida”.
Pelo acima exposto, quem reprime, tolhe e cala sua criança interior, é um ser humano que se limitou, reduziu-se e deixou de continuar crescendo. Pessoa assim medianizadas, psicologicamente empobrecidas e circunscritas a uma visão mediocremente adulta, são incapazes de ver a beleza, a magia e o encantamento do mundo e da vida. São inábeis em ler a poesia de se viver. A elas, sugiro lerem o livro “Exercícios de ser criança”, do grande e inigualável poeta mato-grossense Manoel de Barros.
Decididamente estava certo o poeta inglês do século XIX, William Wordsworth, quando exclamou que “a criança é o pai do homem”.
* * * * *
Não é pelas ruas da infância que ainda
percorro
mas no atravessar do canto dos pardais
e no pisar das calçadas amareladas de
oitis
Passeio pelos mesmos cantos e buracos
novos
como se pedalando bicicletas e me
desviando
das raízes das árvores que menino
contornava
As casas de antes continuam sendo
paisagens
resistindo ao mudar do mundo e dos
transeuntes
embora nelas morem estranhos
residentes
indiferentes aos fantasmas das famílias
de ontem
que me povoam os espaços mais salgados
da memória
Por aqui andei
como agora ando por sobre as pegadas
apagadas
daquele miúdo garoto que então não
sabia
que além das fronteiras daquela quadra
havia territórios a serem ocupados
e cemitérios que até lá nunca foram
visitados
Não preciso das madeleines para de mim
ser lembrado
já vivo em meu próprio sítio arqueológico
de ossos
e nos dias de chuva ou de frio me dói a
costela retirada
Ao contrário de Bandeira meu Recife não
está morto
e a casa da minha avó continua infiltrada
de eternidade
Pelas ruas da infância que ainda percorro
sopram-me aos ouvidos remanescentes
de sonhos
que são para mim sobras da minha
anterior imortalidade
Joaquim Cesário de Mello