Água passa, areia fica.

E aí é curioso, eu devia estar fazendo não sei o que, quando me veio essa pergunta "Cebolas também choram quando cortam humanos?"

É uma mania que eu tenho.

Sempre que a ansiedade atinge níveis absurdos, meu cérebro liga o botão do surrealismo, do abstrato. Quase como se ele quisesse se agarrar em coisas que não existem, pra curar coisas que existem, fugir da pieguisse, do sentimentalismo barato, mas não dá.

Tentei pensar numa casa, na casa da minha infância, mas lembrei das janelas, janelas da alma, lembrei do olhar. Olhos são, sem medo de errar, a coisa mais misteriosa e apaixonante em alguém. O bem querer vem primeiro dali, certeza. Os grandes livros, as grandes músicas, tudo sobre os olhos, dos grandes, dos de deixar maluco.

Mas não, esse texto não pode ser só sobre isso.

Fiquei pensando e matutando sobre o que escrever, tentando desencavar alguma memória sórdida, triste, ou engraçada o suficiente pra valer contar. Nada. Seinfeld, (cuja série ainda nem vi) dizia que ela era uma "série sobre o nada". Arrisco dizer aqui que se a minha vida fosse uma série sobre o nada, seria um nada que ocupa espaço, e aí essa crônica vai passando e não dá nem tempo, nem palavras, pra encaixotar tudo numa coisa mais ou menos entendível, grata, concreta, brava, triste, feliz. Não sei se é culpa minha, ou dessa lógica aristotélica de ter que achar causa e efeito nas coisas, de ter que se fazer entender sempre. É um calvário pra mim, ser menos eu pros outros do que eu sei que eu sou, mas paciência.

Paulo Freire vai falar sobre isso numa carta pra sua amada, falar com a assertividade emocionada que só a paixão pode dar, lê só:

"A boniteza da vida não está na compreensão rígida das coisas nem na lógica bem comportada que exigimos dos fatos, nem tampouco na nossa certeza em termo do que deve ser a própria vida.

A boniteza da vida está na certeza da incerteza e na coragem de começar tudo de novo quando se pensava que já nada podíamos fazer.

A boniteza da vida está em aceitar que até as sextas-feiras podem virar azuis e que nelas rosas, violetas, margaridas podem florir e sabiás podem cantar.

A boniteza da vida está na capacidade de amar, apesar de tudo.

A boniteza da vida está em perceber que amar é melhor que não amar, mesmo quando não amar, como tentação diabólica, pudesse parecer uma porta aberta a mil amores.

Te amo convictamente, Paulo"

Não é maravilhoso? O quão pouco se precisa ter? Nada de lógica, ordenação ou linearidade. Só o presente. Esteja apaixonado então, que esse pouco vai ser só amor, e esse pouco já vai ser muito.

Daí me vem eu e essa mania de encaixar tudo em coisas coerentes, é mania de quem escreve. Quem escreve quer ser lido, lido e entendido. Quer pegar com as mãos um fato e fazer com que o outro sinta com a mesma intensidade e forma que ele, daí o motivo de empacotar a vida em períodos, parágrafos, coesão, e coerência. Rulminações que de nada servem pro outro. Impossível, vai ser desemelhante sempre.

Passaram uns dois dias e eu ainda estava nessa minha cruzada de catar algo relevante pra escrever, quando uma mulher teve seu braço abocanhado pela porta do 08, Sim!

Eu tava ouvindo o transa, (Esse álbum tem sido alimento diário) tiro o fone, olho ao redor e era gente gritando, caos, um fuzuê.

- Tá cego, caralho? desareganhe essa vista - a mulher gritou. A porta abriu, tirou o braço.

O onibus seguiu assim,

sem mais nem menos.

Eu fiquei numa mistura de tentar entender. Choque, torpor. Imagine só, imagine ter um membro tragado pela porta do ônibus. Esse é o tipo de fato estupidamente mundano que não se explica, assim como não se explica as coisas do coração, assim como não se explica quase nada, porque o mundo não nasceu pra ser descrito, nem dissecado.

Eu entrei num looping mental depois disso, uma espiral de pensar como as coisas vão embora fáceis, como temos que ser gratos pelo hoje.

Eu sei, é clichê o #gratidão, quase tão clichê quanto o champanhe, as ondas, os fogos e o branco do ano novo, que acha que faz esquecer todas as feridas do ano que passou, mas não, a gratidão pelo que machuca tem que existir. Cada vez que o erro vem, tem que ser pra errar melhor,

Errar diferente.

A queimadura que eu sofri no início do ano, virou só resquício do que já foi. A marca, o arranhaozinho na lataria ficou, mas acho que esse é o tipo de coisa que vem pra mostrar que somos rochas em constante erosão, pra não me deixar esquecer que estou vivo, que sou grato e frágil, tenho pessoas que se preocupam e mais mil outras coisas. (Se você é uma delas, essas linhas são um lembrete pra você. Obrigado por continuar aqui)

Tá bom, nem tudo deve ter um significado profundo e complexo, uma lição a ser tomada, ou uma moral de fim de filme, as vezes as coisas só são o que são. Um errozinho banal, um deslize fatal, mas ainda assim é bom dar sentido as coisas, a esse vão de espaço e tempo que é a vida.

Sigo tentando.