A Cultura no II Festival Quilombola
Não acima de si própria, a Cultura tudo vence, sobrevive além dos que a criaram, realizaram-na e a ensinaram a outras gerações, que herdaram valores, costumes e patrimônio cultural. A humanidade, tendo a Cultura como companheira, caminha e tem enfrentado circunstâncias transtornadoras, inevitáveis na nossa existência, e comuns aos seus quotidianos. Nunca a Cultura deixou de ser convivente ou protagonista desse fenômeno humano, e que, por causa da sua criatividade e tradição, continua viva. Das crises existenciais ou dos incômodos naturais, como a insistente Covid, estabelece-se, desde a humanidade primitiva, um salutar paradigma: a Cultura é necessária à conduta individual, grupal ou social. Fazer cultura é ser humano.
Reportemo-nos aos próprios heróis e heroínas, considerados como exemplos de fortitude, da remota à contemporânea história, eles e elas se superaram, mas, jamais acima das suas próprias culturas. Pelo contrário, foram tidos culturalmente protótipos de cidadania, exemplos de vida: hábitos e costumes, como se fossem atores e atrizes, no teatro da vida, de excepcionais feitos, que não ocorreram como ações sobre-humanas, sobrenaturais; exceção dada às figuras mitológicas, que, por sua vez, conceituaram-se na ideia e na forma da realidade cultural. Observe-se que Prometeu, manuseando o humus, como a úmida argila dos quilombos, fez um boneco de barro, no formato humano, ao qual Minerva deu um sopro (pneuma), introduzindo-lhe espírito, ânimo (animus), e assim, vida. Culturalmente, essa narração da origem da humanidade (humanitas), que vem de humus, significando terra, barro como aquele das louceiras quilombolas, assemelha-se à explicação da nossa origem, no Livro do Gênesis, da Bíblia, então também descrita na mitologia grega.
Ao relermos os clássicos, sejam reais ou fictícios, os heróis não passaram de personagens culturais ou apenas indicadores na cultura do seu tempo e do seu espaço. De acordo com a época, eram agricultores, caçadores, cavaleiros, guerreiros, trabalhadores, dirigentes ou, mais à frente, astronautas ou futuros habitantes de outros planetas, que sempre se comportarão conforme os padrões das suas culturas. Foram ou serão, como nós, aprendizes da suas endoculturações, desde seu nascimento, no seio familiar ou no seu grupo social (in group), como a criancinha nascida no Quilombo. Ninguém pode se dizer fora da Cultura, fora dessas águas do rio cultural, mesmo que se considere à margem, “marginalizado”, somos todos molhados por esse rio. Enfim, ninguém consegue ser independente dela, embora tenhamos sido seus criadores, mas também seus preservadores, daí as tradições. Ou adeptos e sujeitos das suas mudanças, ou à interação. Estamos no meio desse imenso barco que, por si só, é comandado, parecido à deriva, navega nos mais revoltos mares, sem naufragar ou ir a pique...
Ao se celebrar, neste 27 de novembro, da manhã à noite, na Serra do Talhado, o II Festival da Cultura Quilombola, reflito que, nas lutas da negritude, os heróis e heroínas eram de carne e osso, modelados e educados pela Cultura, lutadores pela liberdade, como os primeiros constituidores dos quilombos. Mas não teriam superado a própria cultura. Fora ou dentro da “visão de mundo” de então, foram formados e se conduziram, buscando virtudes e comuns hábitos e costumes, alguns imprescindíveis ao fenômeno do heroísmo ou do sucesso, como a perseverança, a coragem, a prudência e o equilíbrio. Por isso, os heróis e as heroínas, quando falam, não escondem seus sentimentos; revelam confissões até de fraquezas, como a do calcanhar de Aquiles. Assim também é a Cultura, ao “cultivar” o heroísmo, porém superior a qualquer ação ou ato heroico. A Cultura continua, forte e resistente como Zumbi, relativa, universal e continuamente invencível.