O PÓ QUE SE ACUMULA

Costumo tirar o pó de meus livros uma ou duas vezes por semana, mas ele sempre volta a acumular. É o preço por morar em uma rua sem calçamento e que talvez nunca seja calçada - depois dos trilhos, um prolongamento que muita gente nem sabe que existe e que por isso mesmo não é importante.

Esse “espanamento” semanal é um convite à reflexão: quanto pó acumulamos sobre assuntos não resolvidos? Quanto pó repousa sobre relacionamentos que poderiam ter dado certo, mas não foram começados por timidez de alguma das partes ou das duas? Quantas almas empoeiradas que só esperam uma esfregada de flanela para começarem ou voltarem a brilhar?

Eu mesmo deixei o pó acumular sobre assuntos não resolvidos por medo ou comodismo. O quanto eu poderia ter vivido, ainda que quebrasse a cara, se ousasse mais? Não estou falando de comer a mulher do próximo quando o próximo não está próximo pra se vangloriar na rodada de chopp: estou falando do que poderia ter feito, das pessoas interessantes ou nem tanto que poderia ter conhecido se na última hora não tivesse surgido o chato do sexto sentido me avisando que era furada.

Em contrapartida, já deixei de ouvir este sexto sentido e mergulhei de alma e coração em um relacionamento que desde o começo tinha tudo pra dar errado.

Talvez por isso, mais uma surdez parcial acumulada com uma incapacidade de conversar adquirida nos últimos tempos, assimilei um medo de me envolver novamente em uma nova relação.

Mas não estou morto. Ainda não, enquanto houver vida pra viver e vinho na garrafa para ser degustado.

E ainda vou conhecer lugares e pessoas interessantes antes que a figura da caveira e gadanha visite o cafofo onde estarei alojado, ou me arrebanhe em algum acidente: não sabemos de que forma vamos morrer, por que se soubéssemos, anteciparíamos o desespero. E já temos convites suficientes ao desespero. Sofrer de véspera seria perder o melhor do espetáculo.

Mas, como já disse o grande Érico Veríssimo: "Se a morte é a única certeza absoluta da vida, por que não hei de fazer da minha existência um fato absoluto?"