Vozes anônimas, nem tanto...

O livro Um defeito de cor, da escritora mineira Ana Maria Gonçalves é uma daquelas leituras que faz você parar a obra e ficar pensando em como a nossa história é recheada de dor e sofrimento e, ainda assim, tem espaço para sorrir, para amar e pra resistir. Primeiro porque o livro é o que a gente chama de Romance de formação, que acompanha a jornada de Kehinde ao longo de toda a sua vida, desde a sua meninice em Daomé até o Brasil do final do XIX. E essa escolha narrativa tem um sentido, uma vez que essa época marca o começo do Brasil como país convivendo com múltiplos povos unidos mediante um pacto de violência na qual uma elite Branca e detentora de escravizados pautava o domínio dos demais povos, ao passo que estes últimos só lhes cabia a aceitação de sua condição, sendo sua revolta considerada um ato de ingratidão para com os seus senhores. O que não impedia que esses povos lutassem pela sua liberdade e principalmente pelo seu direito a existir enquanto humanos! E Kehinde não só é testemunha ocular dessa luta, mas uma agente ativa desses momentos! Passando pela negação de ser chamada de Luíza, pela recusa ao batismo e pelo apego aos seus voduns, trazidos de África. O livro nos mostra não “uma escrava”, mas uma mulher que foi escravizada e que consegue a sua liberdade. Nos mostra uma sociedade diversa, com várias matrizes e religiões. Não um povo submisso, mas seres humanos que dividem sua dor e sua alegria, sua raiva, mas também seu canto.

E se eu te disser que essa mesma Kehinde é a mãe do Dr Luís Gama? Não. Não se sabe o nome dela! Só se sabe que ela era uma africana que foi escravizada, mas conseguiu sua alforria. Kehinde pode ser uma dessas muitas heroínas de nosso povo que foi esquecida nos escombros da história. O que Ana Maria Gonçalves faz com sua ficção histórica é traçar um caminho para essa heroína e assim nos tocar… e quantas mais precisaríamos para isso?

Sabe uma coisa que me aconteceu esses dias? Eu tava lendo Racismo estrutural do grandioso Silvio de Almeida e de repente me deparei com uma situação que me deixou “abalado”. É que no meio da obra o autor cita um artigo da vereadora assassinada Marielle Franco, mais especificamente um trecho de sua tese de mestrado onde ela faz uma dura análise dos aparatos racistas que regem a pacificação das favelas do Rio de Janeiro. Disse ela:

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[A ocupação das favelas] não é do conjunto do Estado, com direitos, serviços, investimentos e muito menos com instrumentos de participação. A ocupação é policial, com a caracterização militarista que predomina na polícia no Brasil. (...) o que é reforçado mais uma vez é uma investida aos pobres, com repressão e punição. (...) Ou seja, a continuidade de uma lógica racista…

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O que mais me pegou ao fazer essa leitura é que Marielle foi vítima daquilo que ela pesquisou. O povo preto é o mais assassinado, como Marielle. O Brasil é o país que mais mata LGBTQIA+, como Marielle. No Brasil mulheres, como Marielle, são caladas, violentadas e mortas todos os dias, e no caso de mulheres pretas mais ainda. Mas ao ler esses trechos me lembro que, igual que Kehinde, essas vozes não podem ser apagadas. Kehinde é uma personagem fictícia, mas Marielle não foi. Dr Gama não foi, Chicão Xucurú não foi, Elza Soares não foi, Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus e tantas vozes que se levantaram pra dizer: Eu posso, eu sou, eu existo!

Ou como diria Jorge Ben Jor:

Eu quero ver

Eu quero ver

Eu quero ver

Eu quero ver

Quando Zumbi chegar

O que vai acontecer

Zumbi é senhor das guerras

É senhor das demandas

Quando Zumbi chega

É Zumbi é quem manda