CRÔNICA DE UMA JANELA APAIXONADA

Seria uma janela como outra qualquer, não fosse seu enorme prazer de sentir-se um olho a observar a cidade em cima do céu do vigésimo andar.

Acreditava-se onipresente naquele quarteirão de poucos metros quadrados. Na onisciência do que tudo via se considerava um deus a espreitar o mundo que não criara, através do buraco na parede por onde o vento passava, arejando o quarto onde vivos dormiam, acordavam, trocavam de roupas e em algumas vezes se amavam. Um quarto está para um lar como uma guarita sigilosa e privada está para um castelo. É onde os reis podem se despir de seus trajes majestosos, e, aliviados das cintas, dos espartilhos e das armações metálicas, podem respirar na soltura proeminente e flácida dos abdomens relaxados.

Prisioneira em sua solidão paredada dialogava com as demais janelas na linguagem das ventanas, no entreabrir piscante das cortinas e persianas, em um confidenciar silencioso no bailar dos ventos que só as janelas sabem. Triste das janelas descortinadas e as dos apartamentos desocupados, pois vivem a mudez como fendas fechadas e reprovadas.

A janela do vigésimo andar olhava o passar dos transeuntes pelas calçadas. Conhecia-os no seu ir-e-vir cotidiano. Acaso soubesse as horas saberia com exatidão o instante em que cada um passaria ou indo para o trabalho, escola, compras, ou voltando dos compromissos repetitivos do dia a dia. Havia os madrugadores passeando cedo com seus cães e aqueles que vinham de longe para os trabalhas mais braçais e menos remunerados. A janela, assim, apreciava do alto a romaria continuada dos homens.

Dos apartamentos em frente observava como um voyeur privilegiado a vida intima das moradas. Os cafés da manhã e os jantares, o conviver nem sempre harmônico das famílias. Já vira de tudo um pouco: brigas, traições, separações, sexo, choros e várias e diferentes formas humanas de se amar e de odiar. A privacidade de uma casa é o esconderijo onde os seres humanos dispõem suas máscaras e revelam suas verdadeiras faces.

Mas o que mais ela gostava de olhar era a janela direita do décimo quarto andar do edifício defronte, a janela do quarto dela que ficava próximo da esquina onde havia um semáforo. Foi lá, na distância métrica que atravessa as ruas, que conhecera pela primeira vez o amor das impossibilidades. A outra janela era bela e bem cuidada, ornada com lindas cortinas rosas claras de algodão mesclado, com finos bordados florais que lhe davam um ar tímido de feminilidade clássica e sedutora, que lhe fazia pulsar as artérias de alumínio no ofegar frio da vidraça.

E assim se amaram por anos e décadas. Muitos moradores se mudaram, os transeuntes já não eram mais os mesmos, os cachorros eram outros, mas a janela do vigésimo andar com nenhuma outra janela jamais se encantara.

E viveram feliz para sempre, até que a demolição um dia as separe.

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 21/11/2022
Reeditado em 30/11/2022
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