Crianças afogadas, adultos afobados e coisas que doem.

Tô precisando de calma e mansidão na vida. Hoje corri atônito. Escrevo isso depois de um vidro esmigalhar na minha frente, depois de eu adormecer no ponto e esquecer que eu sou eu e que você é você e que...

Tinha prova, prova que a minha cabeça fez colocar no fundo da memória. Me imagine chegando na faculdade com toda a calma do mundo, parando pra jogar conversa fora com não sei quem, scrolando o TikTok (me rendi a essa rede social, julguem com força, eu deixo) E aí eu leio uma mensagem com três exclamações, não uma, não duas, mas três exclamações.

- Gabriel, hj é prova!!!

AaaaaaaaaAaaa

Sabiam de onde veio a exclamação?

Li no twitter que veio de uma expressão em latim "Io" que representava alegria. Não sei como se deu isso, mas em algum momento da história, o "I" se apoiou no "O" e viraram isso aqui "!", até parar numa mensagem de whatsapp pra lembrar um desavisado.

Voltando ao surto...

AaaaaaaaaAaaa. Pois bem, eu corro ignorando os buracos e cantarolando uma música qualquer na minha cabeça, chego no setor e lembro que agora exclamação não é alegria, e que a ansiedade continua me matando e eu ainda ando pensando muito em você, não deveria, mas continuo, não é saudável, mas continuo, não é assim que funcionam as coisas, mas continuo, e eu penso, penso sem medo, mas uma parte que insiste em ser racional diz que eu tenho que parar e aí eu caio em si.

Lembro que estou correndo, atrasado, que agora não é hora pra pensar no seu sorriso e quase tropeço num buraco, um dos grandes.

- Ué, hoje não era prova? - Alguém da turma me para, franze o cenho, vai embora. Eu só consigo responder um "pois é" esbaforido e continuo pra frente.

Chego perto da sala e todo mundo move a cabeça junto comigo, como quem acompanha a desgraça alheia. Um amigo faz aquele sinal com um punho cerrado e a outra mão aberta do tipo "tomou no c..." Entro.

Tento pacificar em mim o ódio de ter esquecido, de ser displicente com as coisas, de ser tão... tão...mas aí já tinha girado a maçaneta e entrado, tinha que me mexer, fazer algo. O ar gelado assusta a camada de suor do meu rosto e a professora me olha de súbito como quem diz "isso é hora" eu digo baixinho que o ônibus atrasou, que me desculpa, que...

Eu acho que ela sentiu o meu desespero e se compadeceu, porque olhou pra mim e com toda a calma do mundo disse:

- Calma, pode respirar.

Eu respirei, respirei e devo ter feito aquilo no menor tempo da história, sorvendo como quem retira de cada molécula um pedaço de ar. E aí acredite você ou não, enquanto eu olhava para a prova e para as palavras ali dentro, lembrei da calma, a calma que eu senti quando me afoguei, essa foi a primeira vez que isso aconteceu.

Eu devia ter entre 14 e 15, não lembro tanto a ponto de descrever em detalhes, mas aqui temos mais um algo sobre mim: Eu sempre fui um bicho desengonçado, desajeitado. Era meu aniversário e eu devo ter insistido num ganir infantil pra descer um toboágua, hoje a água não deve nem engolir o meu joelho, mas na época cabia eu inteiro.

Outra coisa sobre mim: Sempre fui malformado da metade pra baixo, nunca nadei, mas lembro de na hora ser coberto por uma valentia, de descer engolindo uma camada d'água, de ver as coisas passando e ficar ali, ficar ali repousado, depositado no fim do toboágua.

Fiquei ali por uns segundos, o suficiente pra ver o sol como um borrão amarelo trêmulo, mas de novo, eu não entrei em pânico, em polvorosa, não. Eu só me vi coberto pelo azul e depois por uma abóbada flutuante, e ali eu não respirei, não respirei, mas não importava, uma paz me tomou como se eu fosse água.

Estou de volta a prova e tenho que lembrar o que é uma modalizacão lógica. Marco a que eu acho que é, não a que eu tenho certeza, porque eu nunca tenho certeza das coisas. O papel é áspero, e o suor já secou por causa do ar condicionado. Assino meu nome na lista e meneio com a cabeça dizendo "obrigado prof..."

Ela responde dizendo um "É, eu sei, nem todo dia é fácil" deu vontade de chorar ali, mas eu não podia, não podia mesmo. Respondi dizendo que não era mesmo não, que obrigado, que vou correr pra almoçar e saí, saí como uma criança imersa em água e silêncio.

Minha irmã me puxou pra cima fazendo uma camada de água subir comigo e eu convulsionar como quem acaba de nascer, mas eu não sei, não sei, porque eu falo sobre essas coisas, acho que é tentando encostar em você, e fugindo ao mesmo tempo.

Eu sempre fico com medo das coisas que eu escrevo ficarem datadas, presas no tempo, num eu que daqui a pouco vai ser tão passado que eu nem vou reconhecer mais, mas é complicado. Você continua escrevendo de uma forma que eu nem sabia que era possível, numa sagacidade, fôlego de vida, num entender nada da vida e entender tudo, numa acidez, graça, comicidade, numa coisa que eu chego a pensar se é você, ou se sou o que eu pensei que era você. Mas o que importa é que em cada pedaço, em cada parágrafo, a coisa me atinge de uma forma quase meteórica, num me deixar remexido que eu tive que apagar e refazer esse trecho que nem era sobre você, mas agora vai ser.

Vai ser, pois por mais que eu tente entender quem eu sou e perceba que sou água que se move conforme, que sou vidro temperado que esmigalha e não corta, não machuca, que não superei mesmo mentindo pros meus amigos que sim, eu ainda sei que te entender dói menos, e que escrever sobre meu eu criança se afogando dói menos, e que escrever sobre meu eu atrasado dói menos e que tudo dói menos quando é sobre o que é meu

E dói mais sobre o que não é meu.