Desculpe o transtorno

É muito difícil pensar que minha visão sobre o amor é uma visão quebrada. Doentia. Não doentia do tipo que assuste você, caro leitor. Só do tipo platônico mesmo. Ideal em excesso. Páthos. Comédia romântica furada. Redundante, eu sei. E não, eu não sou previsível. Eu não gosto de comédia romântica, odeio musical, comecei a ver série da pandemia pra cá. E por aí vai.

Agora irei me retratar, pois infelizmente ainda dou satisfação para as pessoas. Porque busco validação. Mesmo que quase ninguém se importe comigo de verdade, tirando quem por natureza me ama. Minha mãe. Tem amor até na fonética, na junção das palavras, na repetição de sons em “minha”, “mãe”, “me” e “ama”.

Cresci assistindo tudo que passava na televisão, exceto os conteúdos “impróprios” para minha idade. Eu não era certinha, eu era medrosa. Eu sou. E talvez um pouco santa pela genética. Minha vó era, minha mãe é. Eu tenho pena. Além de amor e admiração, pena. Por não terem vivido nada. Eu não quero ser assim. Quero ser a parte estendida do amor, da admiração. Mas nunca da ansiedade enraizada, do nervosismo e da paranoia familiar que me cerca. Eu não era uma criança normal, era uma criança peculiar. Lembro-me que no segundo ano do ensino médio, que foi há pouco tempo, minha professora igualmente peculiar me disse que eu era uma aluna com altas habilidades. E que eu precisava ter sabido disso antes. Eu juro que ouvi “criança”. E até hoje me sinto uma criança prodígio no corpo de uma adolescente-adulta que vive se lamentando pela infância mais ou menos. E pela pré-adolescência mais ou menos. E pela adolescência menos. Sim, eu tive uma adolescência negativa. Aliás, não tive. Por isso me recuso a dizer que sou adulta. Isso é estranho e inconcebível. Eu sou eu, mas não sei em qual fase estou. Talvez em todas. E recentemente um Uber ficou chocado ao saber que eu era maior de idade, então tá ótimo. A palavra de um Uber é o novo pilar social da verdade, posto antes pertencente aos taxistas, que também são conselheiros amorosos e especialistas de política e futebol. Bem, é que eu não sinto que um motorista de Uber está programado para mentir. Mas não sou tão escolada assim, ainda mora em mim tamanha ingenuidade que não deveria me pertencer mais. O termo “escolada” é bastante utilizado na minha cidade. Ou pelo menos nas conversas ao meu redor.

As mulheres, como sempre, carregam essa alcunha. É mais uma palavra que, só pela associação ao gênero, ganha uma conotação pejorativa. Sexista. Uma mulher “escolada”, na definição mais básica que posso pensar agora, é aquela que não é feita de besta. Também conhecida por outros nomes nunca antes proferidos por mim.

Eu definitivamente não sou uma mulher assim. Mas deveria. Além de horrível por todas as razões aparentes, é monótono ser sempre a idiota. Não a idiota no sentido de ser imbecil, a causadora de danos. Idiota no meu sentido. Que é o de ser besta. Nesses filmes terríveis corajosamente classificados como “comédias” e ainda “românticas”, as protagonistas também são idiotas. Mas menos que os caras, que são pseudolegais. E menos que os diretores, que são homens que enxergam mal as mulheres. Se é que enxergam. Acho que só as veem. Sabe quem enxerga, mas talvez com um certo grau de miopia ou algum probleminha psicólogo pendente? Almodóvar. Espero que ele jamais veja isso. Eu dizendo que ele é problemático. Ah, e eu acho que ele realmente tem problema de visão. Meu Deus. Não foi intencional. Ele vive de óculos escuros. Se fosse hétero eu diria que é hype na crise de meia idade prorrogada. Mas, como não é, diria que é fotossensibilidade ou algo do tipo. Almodóvar, eu amo os seus filmes. Talvez eu seja problemática como você. Não tanto quanto suas mulheres, nem como você exatamente, mas do meu jeito. Às vezes fico pensando que queria ser uma mulher-cor de Almodóvar, a sua musa, ou ser eu a criadora. Gosto dos dois. De ser as duas coisas. Eu gosto de mais de duas coisas, posso ser também mais de uma. Sou eu em quase todas. Com grande chance de não ser em uma sequer.

Almodóvar é genial. Espero continuar achando. Aos 14, genial era Tarantino e sua estética violenta. Hoje eu gosto, gosto muito, mas criticamente.

Acho engraçado pensar no passado desses dois. Tarantino trabalhava em um cinema, eu acho, em que passava muitas sessões de filmes pornográficos. Muito gráfico mesmo. Percebe-se que quase não existe cenas de sexo em seus filmes, no máximo alguma insinuação. Sem nudez. Sem romance. Só sangue, diálogos estupidamente grandes e muito bons.

Almodóvar, na mesma situação, trabalhava em sessões de filmes extremamente violentos, do subgênero “gore”. Seus filmes são passionais, a violência não é gráfica, o vermelho não é sempre de sangue e há sensualidade em tudo. Há polêmicas em ambos. Não quero dizer que são iguais, só que diferentes.

Não são. Almodóvar é, pra mim, ridículo de tão genial.

Quero dizer que todos somos marcados de alguma forma. Com alguma violência. Que algo que nos impacta pode desencadear tantas coisas, cada absurdo, inclusive arte. É isso que eu quero fazer da minha vida. Dar sentido. E eu só vejo sentido na arte. Talvez seja por isso que eu enxergo as pessoas sob essa lente. Nunca é recíproco. E não estou falando de amor romântico. Mas pode ser.

Eu provavelmente ainda não sei o que é isso. Mas se foi o que eu senti quando disse que estava sentindo, de verdade, então eu sei. Eu não sei se ele lembra, mas eu criei esse site ( ou perfil, melhor dizendo) pra ele. Hoje é meu, seu, de quem quiser me ler. Mas durante muito tempo foi só dele. Tudo bem que meu professor de gramática pediu, ele gostava de me ler também. E eu gostava dele, não do professor, do cara. Eu escrevia coisas em papéis, sim, nos finados papéis. Escrevia quando ele já tinha ido dormir, escrevia pra ele acordar e ler. Porque tudo que eu sentia era tão grande que não cabia em mim, eu precisava viver. Na ausência da permissão de vida, eu escrevia. E é isso que faço até hoje. Na ausência das coisas, das pessoas, de

minhas próprias permissões e da vida em si, eu escrevo. Eu tenho quase certeza de que não sei de nada, só não tenho absoluta pelo mesmo motivo: eu não sei de nada. Eu só sei que não entendo o porquê, reconheço minhas contradições e digo, sempre, que eu relembro de tudo com uma nostalgia infantil. E com um sentimento de vingança iminente. Não, tô brincando. Mas pode chamar de alívio cômico. Percebi que estou caindo de sono, cochilei sobre meus braços. E será assim até que eu me permita fazer isso nos braços de quem aguentar me ouvir e, ainda assim, amar me ouvir. E me ler. E me presenciar.

Talvez seja um sinal divino para eu parar. É que eu não posso me trair, renegar minhas palavras. Eu penso que um dia vou te encontrar do jeito mais improvável possível, estaremos os dois apresentáveis para que não fiquemos constrangidos, e que eu vou te olhar com a certeza de tudo que já senti. E você também. E aí eu já não serei mais tão idiota, mas também não “escolada”, talvez graduanda. Uma eterna estudante. Vou pedir ou não pra te abraçar. Só pra sentir que isso existiu. Que você respira. E eu também. Que você é você. Que eu não conheço ainda. Que eu sou eu, que você pensa que conhece. Nesse dia nós finalmente iríamos nos conhecer, sem as distâncias que insistem em nos maltratar. Talvez me partisse novamente o coração ir embora, cada qual pra um extremo, mas o seu espaço aqui dentro passaria a ser mais realista. Até que meu corpo transformasse tudo em sonho de novo.

Enquanto eu dou fé do mundo, como um bebê despertando sua curiosidade na cama, tô com vontade de dizer que te quero sempre. Em paz, bem. Porque comigo você nunca deixou de estar.