Os velórios "animados" de uma família "sui generis"

Semana passada se foi um dos últimos baluartes da família. Partiu mais um ícone: “Seu Arvo”. 87 anos. Combateu o bom combate, completou a corrida, missão cumprida.

Tristeza, claro!

Dor, decerto!

Lágrimas, como não?

Saudade, desde já!

Alegria, risos, lembranças, histórias e até uma baguncinha, também!

É que os velórios da família são meio que “sui generis”, como dizia meu pai.

E o do tio não foi diferente. Se bem que não foi propriamente no velório dessa vez. Foi no enterro mesmo. Seguíamos no cortejo normalmente, atrás do carro funerário. Silêncio quebrado pelo som do violino. Roberto Carlos. Como é grande o meu amor por você.

- Impossível não lembrar da sua mãe! Como sinto a falta dela!

Minha prima, na verdade prima da minha mãe. Afilhada da minha mãe. Sempre tiveram uma ligação muito forte. Sempre estiveram mais pra irmãs mesmo.

- Ah, da aqui um abraço!

E aí é aquela hora que a gente chora junto. Por quem tá indo, por quem já foi faz um tempo, por quem já foi faz bastante tempo, mas que não parece de jeito nenhum que faz tanto tempo.

E tem tudo pra ser mais um enterro melancólico, carregado de sofrimento, de “Meus pêsames” e “Meus Sentimentos”, de “Deus sabe o que faz” e “Descansou...”

Até que alguém - sempre tem alguém - que aciona o modo “Saudade das Presepadas”.

- O que que a Tia Marina aprontou mesmo pra poder entrar no show do Roberto Carlos?

Aí a gente tem que recontar e reviver a história, tintim por tintim.

Show do Roberto Carlos em Prudente. Na APEA. Associação Prudentina de Esportes Atléticos. Dona Marina empolgou.

- É nesse que eu me vou! Me sou sócia da APEA! E olha que beleza: quatro da tarde. Não me vou nem perder meu sono!

E, pra quem era sócio, condições especiais: não pagava ingresso, só tinha que levar um certo número de embalagens de produtos de uma determinada bebida láctea, que patrocinava o evento.

O problema é que Dona Marina deixou pra trocar as embalagens pelo ingresso só na véspera do show. E já tava tudo esgotado na primeira semana da promoção. Voltou pra casa arrasada.

- Não acredito que vou me perder o meu Roberto Carlos!

Só que não. No dia seguinte, foi a Dona Marina que deu o perdido. Saiu falando que ia dar uma andada pelo centro.

- Me vou pra cidade!

Escureceu, o comércio fechou e cadê Dona Marina. Já tava todo mundo preocupado.

- Se não aparecer, vamo ter que partir pra busca!

Apareceu. Toda feliz. Cantando Emoções.

- Onde cê tava, Dona Marina?

- Me fui no show do Roberto Carlos!

E não é que foi mesmo!

Chegou na portaria do clube, desesperada.

- Seu Home, minha filha tá aqui no show. Me ligou. Tá passando mal. Tá vomitando. Tá com a cabeça estourando. Tá quase desmaiando. Pediu pra eu me vim aqui buscar ela e levar ela pro hospital. Eu me vou entrar pra procurar ela lá dentro...

- Calma, minha senhora! Vou chamar um policial pra acompanhar a senhora.

- Não precisa não, seu Home! Eu me sou sócia, pode deixar que eu acho ela...

- Por gentileza, Nascimento! A senhora precisa encontrar a filha que tá lá dentro, passando mal. Poderia ajudar, por favor?

- Pois não! Vamos lá!

Tá achando que o sonho acabou aí?

- Eu não me vim até aqui pra não ver o Roberto Carlos! Vou engambelar esse Polícia!

Quando chegaram no ginásio, Dona Marina parou no alto da escada.

- Seu Polícia, vou ver se eu me vejo ela daqui de cima.

- Tá certo, Dona! Se descer periga demorar mais pra encontrar a menina. Me passa a descrição dela, por favor, pra eu poder ajudar a senhora.

- É loira, magrinha, de olho verde...

E eis que sobe ao palco...

- Quando eu estou aqui, vivendo este momento lindo...

- Ah, o Home! Roberto! Roberto! Você é que é lindo!

- Ô, Dona! A sua filha...

- O Roberto Carlos, seu Polícia! Ele não é lindo? Sabia que é ele mesmo que se corta os cabelo dele?

- Ô Dona! A senhora tá me enrolando?

- Sabe o que é, seu Polícia?

E aí contou pro seu Polícia todo o imbróglio.

- Seu Polícia, se eu soubesse que os ingresso me era limitado, eu ia ser a primeira da fila. Não me manda embora não, seu Polícia! Eu só queria chegar perto do Home e falar pra ele que ele é lindo e que eu me gosto muito dele e das música dele.

- E queria dar um beijo nele. Na bochecha, com todo o respeito, que me sou casada com o Ci. Mas já me vou ficar muito feliz se o senhor deixar eu ficar só vendo ele daqui mesmo!

- Quer saber de uma coisa, Dona? Eu vou é voltar lá pro meu posto e cuidar da segurança desse show. E a senhora, da próxima vez, adquira seu ingresso com antecedência!

E não é que Dona Marina obedeceu à risca a ordem do seu Polícia?

Alguns anos depois o Roberto Carlos voltou a Prudente. Dessa vez, o show foi no Ginásio Municipal de Esportes. E não tinha promoção. E o ingresso tava salgado. Mas ela nem hesitou. Comprou ligeiro pra se garantir. Entrou pela porta da frente dessa vez.

E saiu chorando. E tremendo. Com a rosa vermelha na mão.

- Me ganhei a flor do Roberto Carlos! Me deu na minha mão!

- Mas, Dona Marina, seu ingresso não era pra primeira fila...

- Não me era mesmo, mas tinha umas cadeira desocupada. Aí uma moça chamou a gente que tava na fileira de trás pra sentar lá. Sabe quem era? A Maria Rita!

- Sério que você conheceu a Maria Rita?

- Que pessoa linda, fina, educada! Uma lady!

- E a rosa?

- O Home me deu! Beijou igualzinho faz na televisão e me entregou...

E segue o enterro...

Até que sobe o coveiro. Rindo. Tava ouvindo a história e se divertindo com as pataquadas da Dona Marina.

- Pessoal, vou pedir pra vocês se afastarem um pouquinho pra eu poder tocar um bicho que tá encroado ali dentro da sepultura. Mas não precisa assustar não: é só um sapo.

- Não era seu pai que tinha uma coisa com sapo?

- O Homem do Sapo!

- Foi numa festa né?

- Foi no casamento do Coruja, lá no Thermas! O baile já tava a milhão. Depois de tomar algumas, várias e todas, ele saiu pra fumar. Voltou com o bolso da calça estufado. Pensa num volume. Parecia uma bexiga no ponto de estourar.

- Que é isso, seu Ci?

- Rapaz, não conta pra ninguém! É um sapo! Peguei pra soltar ele aqui no meio do povo pra ver o escarcéu. Mas o bicho inchou aqui no bolso e agora não tem jeito de tirar ele...

- Mais louco que o Batman! E agora?

- Agora é esperar, ué! Vem, Dona Marina! Vamo dançar!

E o sapo desestressou. De repente, com o ritmo do bailado...

Aí o seu Ci conseguiu realizar o que havia planejado. Tirou o bicho do bolso, ergueu acima da cabeça pra todo mundo ver e soltou o amiguinho.

- Vai, meu querido! Paz, irmão!

Correria. Gritaria. Sapatos ficando pelo caminho. Mulherada subindo nas cadeiras. E o sapo desfilando, dançando aliviado, solo, com a pista exclusiva pra ele.

- Mas teve uma pior, que ele aprontou numa fazenda, não foi?

- Ele trabalhava na Sanbra. Tinha um cliente, dono de transportadora, que todo final de ano levava o pessoal do escritório pra fazenda dele, em Três Lagoas. Fretava ônibus pra levar as famílias de todos os funcionários. Acendia a churrasqueira na quinta e só apagava no domingo. Bancava tudo. Festa de responsa!

- E o sapo?

- Toda noite, depois da janta, todo mundo ficava por ali mesmo, na varanda. Não tinha celular nem televisão. O pessoal ferrava no truco, tranca, molecada jogava dominó, brincava de Stop, desenhava. Tinha a galera da voz e violão. E a coisa ia longe.

- Mas pera aí, cadê o Sardinha?

A maioria das pessoas nunca chegou a saber o nome dele: conhecido como Sardinha desde os nove anos, quando começou a trabalhar na peixaria.

Depois de tomar algumas e várias e todas, ele saiu pra fumar. E voltou, segurando a camisa pelas pontas, formando uma sacola.

- Que é isso, Sardinha? Foi colher fruta no escuro?

- Fui colher sim, mas não é fruta não!

E chacoalhou a camisa, como que desfraldando uma bandeira: e a sapaiada saiu pulando por tudo o que é lado. Correria. Gritaria. Cartas, peças, giz de cera e papel voando, mulherada e criançada chorando e xingando.

Bom, a essa altura, os rapazes já tavam acabando de cimentar a gaveta, ajeitando as coroas de flores sobre o túmulo e começando a limpar as ferramentas.

- E aquela da coberta da tia Lucila? Foi no velório do Tio Pedro?

- Foi sim! Achei que não ia ter zoeira no do meu vô. Todo mundo achava que ele era bravo. Mas o que pouca gente sabe é que ele gostava de brincar. Tinha excelente senso de humor. Inteligentíssimo pra tirar umas sacadas bem fora da curva.

- Então tudo certo! Mas como foi a arte?

- Fica a dica pra quem promete que vai virar a noite no velório e não aguenta a pegada. A lucila sentiu na pele. Três da manhã. Alguém trouxe um lanchinho. Aquele clássico de pão com mortadela. A pessoa mandou três pra dentro. Aí esticou o couro da barriga e murchou o do zóio.

- Vou ali dentro dar uma descansadinha! Tá um friozinho, né? Será que não tem uma cobertinha aí?

Tinha. Esperaram a inocente cair nos braços de Morfeu. Cobriram ela com a tampa do caixão. Quando acordou...

- Ahhhhhhhhhhhh!

Saiu correndo, chorando, xingando. E veio todo mundo pra ver o que tava acontecendo. Pessoal dos outros velórios, os funcionários da funerária, gente que tava do lado de fora. Já tavam até ligando pra polícia.

- Calma, pessoal! Não foi nada demais. A moça teve um pesadelo, acordou assustada.

E tem outras tantas histórias nesse mesmo naipe que dariam outros tantos registros. Mas é que a gente acabou sendo gentilmente convidado a se retirar, pelo pessoal da administração do cemitério, porque já tava na hora de fechar os portões.

E assim vencemos mais uma. Sim, vencemos. No fim das contas, essas armadas acabam servindo pra amenizar a tristeza da despedida, pra deixar um pouco mais suave esse trecho tão íngreme e acidentado que a gente tem que percorrer.

Parafraseando o grande Paulinho da Viola:

Um mestre do verso, de olhar destemido, disse uma vez com certa ironia:

- Se lágrima fosse de pedra, eu choraria!

Mas eu, ainda que chore o pranto comum, que todos choram, prefiro evitar com um sorriso o transbordar do rio de murmúrios que corre em minha alma.

Meu riso, indolente por questão de estilo, serve antes de tudo, pra aliviar o peso da dor da perda, que ninguém é de pedra!