MEMÓRIAS DE MENINO EM 1963
Nos meus sete anos brincava nas ruas sem asfalto. A via era coberta por pedregulhos grandes e havia muita poeira. Se os canteiros da Avenida Afonso Pena, com enormes árvores, poderiam ou não ser gramados, não me recordo. Na calçada, esquina com a rua José Antônio, havia três ingazeiros com o ingá, uma frutinha doce, mas com pouca polpa, o que fazia necessário que o menino subisse pelos galhos das árvores para colher o maior número de frutos. Todos nós, comíamos ali mesmo, sem nenhum asseio, o que tornava a frutinha mais saborosa ainda.
É bem verdade que, apesar dos frutos serem pequenos, alguns eram grandes, raros e grandes, mais doces que todos os demais, um achado. Muitas vezes eles estavam colocados nos mais altos galhos do ingazeiro, o que exigia um esforço maior e muita perícia para a colheita. O risco era grande, mas não me lembro de acidentes com ninguém. Deus mandava alguns anjos para protegerem aquela horda de meninos da rua.
O vestuário era simples: um calção! Nada mais cobria o corpo. Os pés no chão, sem sandálias ou chinelos, ficava grosso de terra e ia sendo formado um cascão de proteção.
Éramos nós, os meninos de sete anos, queimados pelo sol forte, sujos de poeira, cabelos desalinhados, com estilingues nos pescoços e, no bolso do calção, talvez, um saquinho com bolitas (bolas de gude) ou ainda, quem sabe, um pião.
O jogo com bolitas era, normalmente, o “oco”. Então, convidávamos o amigo: "vamos jogar bolita", ou, então, "vamos jogar oco"?
O oco era um pequeno buraco feito na terra com o próprio calcanhar. Nas mãos tínhamos um pequeno graveto e, girando o corpo, formávamos o oco com o calcanhar e um círculo com um raio de aproximadamente meio metro.
A uma distância de cerca de uns três metros era traçada uma linha e todos os jogadores ali se postavam (atrás da linha). Era necessário arremessar a bolita o mais próximo do oco. Se mais de uma bolita ficasse dentro do círculo, a que estivesse mais próxima do oco iniciava o jogo.
Primeiro o jogador deveria tirar todas as demais bolitas que estivessem dentro do círculo para fora dele. Depois, deveria acertar sua bolita dentro do oco e, assim, adquirir o direito de ir “matando” as outras bolitas em jogo e que estivessem fora do círculo.
Os jogos eram combinados “à perca” ou “não perca”. Se o acordado fosse que o jogo seria “à perca”, cada bolita “morta” tornava-se propriedade do jogador que a acertou. Ao final, vencia aquele que tivesse “matado” a última bolita.
Imponente, no cruzamento da Avenida Afonso Pena com a rua José Antônio Pereira, erguia-se o Obelisco, branco, com quatro escadas e pequenas passagens redondas, uma de cada lado, por onde entravam e saiam as revoadas de morcegos num show diário ao anoitecer.
Era por ali que se travavam as batalhas com bolitas, com espadas de pau, com piões e pandorgas.
Um dia vieram algumas máquinas: uma motoniveladora, caminhões e outros apetrechos. Logo os operários, e a vizinhança, em polvorosa, via que o asfalto cobriria a nossa rua.
As donas de casa, felizes, já imaginavam que a limpeza do lar seria facilitada, as roupas ficariam mais limpas e seus filhos mais higienizados. Ai que tristeza para os meninos e que alegria para suas mães.
Mal sabíamos, excitados que estávamos com as máquinas em movimento, que aquele asfalto iria sufocar a respiração da nossa terra, iria cobrir as pedrinhas que serviam como munição para nossos estilingues e iria acabar com nossos campinhos de bolitas. É, porque depois do asfalto na rua vieram as calçadas para pedestres.
Nosso mundo veio abaixo. Nossa cultura infantil, há tanto preservada, diluiu-se no piche. As brincadeiras mudaram, as bolitas foram sendo aposentadas, a sagrada poeira já não cobria os nossos corpos e não tingiam de marrom as nossas pálpebras. A nossa terra estava cruelmente asfixiada.
A companhia de energia elétrica agradecia. É que os meninos mais velhos não teriam mais as pedras necessárias para quebrar as lâmpadas de iluminação pública. Os passarinhos também cantavam porque os malvados não teriam mais farta munição para quitar-lhes a vida.
A terra, porém, essa chorava. Daquele solo o piche tiraria a vida, plantinhas perderiam seu espaço, os cavalos das carroças deveriam ser ferrados, os meninos não poderiam mais caminhar confortavelmente porque aquela lama negra do petróleo queimaria os nossos pés infantis, sem costume com chinelos, sapatos e meias.
Eu ali, sentado na esquina da Avenida Afonso Pena com a rua José Antônio, via a esquina do obelisco ser coberta por piche.
Ah, saudade. Ah, saudade das coisas simples e da integração menino/terra. O asfalto engoliu a rua e ela nunca mais foi a mesma!