SOS
A vida era feliz em 1975, a rua fôra recentemente asfaltada, mas continuava sendo nosso palco de brincadeiras, pique-esconde, salva, mãe da rua... infelizmente não tínhamos como jogar bola de gude, o asfalto nos tirara este prazer.
As disputas com pipas, piões e balões eram o auge, era o que nos movia todos os dias depois da escola, para alguns e antes para outros. Ainda não havíamos despertado sexualmente, coisa que para alguns era precoce, mas para a maioria a libido era algo secundário.
....até que ela mudou-se para a rua vizinha, uma travessa da rua em que morávamos , uma ruazinha sem saída, ainda não asfaltada. Loura, coisa rara em nosso bairro de maioria negra. Havia algo diferente nela, não sabíamos explicar, mas a cada vez que a avistávamos uma atração irresistível acontecia, as conversas paravam, as brincadeiras, as risadas, o que quer que estivéssemos fazendo, neste momento era interrompido.
Não demorou muito para que surgisse entre nós uma disputa muda, velada, que nos deixava cada vez mais inseguros, rivais, inimigos silenciosos. Sim, porque nada comentávamos a respeito, ninguém seria o primeiro a demonstrar fraqueza.
Enquanto entre nós tudo se passava de uma maneira até inocente, ela reinava absoluta, sabedora do que provocava. Quem seria o primeiro? O mais atrevido? Em 1975 isto era um tabu, não tínhamos a malicia, a libido que nas mulheres é sempre antecipada. Naquele verão de 1975, em pleno gozo de férias, algo muito estranho estava nascendo em nossas mentes e corpos, algo estava despertando...
Pela primeira vez ansiávamos pela volta às aulas, queríamos saber com quem ela estudaria, em qual sala, quem de nós seria o sortudo, seria seu colega de classe. Seu pai era motorista de ônibus, ela era filha única. Antecipei-me aos outros, mesmo antes da volta às aulas, o fato de mamãe ser vendedora de roupas, perfumes, produtos diversos fez com que houvesse uma aproximação entre nós. Conversamos sob o olhar furtivo da mãe dela, enquanto escolhia os produtos demonstrados pela minha. Descobri que tínhamos o mesmo gosto musical e outras coisas em comum, é claro que isto só não bastava para uma conquista.
O destino prega peças, mas seria generoso comigo e demonstrou isto ao conferirmos a lista de salas e seus respectivos alunos. Ficamos juntos em um universo de desconhecidos, tínhamos um ao outro e todo o ano letivo pela frente. Nossa proximidade tornava-se mais estreita a cada dia...
De repente o mundo ficou relegado a nossa pequena vizinhança, e este mundo era todo nosso, neste mundo não cabia mais ninguém. Claro que nosso relacionamento não passou despercebido por ninguém, muito menos por nossos pais, que conversaram e resolveram que não havia nada demais em deixar que namorássemos. Então passamos a nos ver na porta de nossas casas. Eu não conseguia deixar de temer o pai dela, que estava sempre de mau-humor, bravo, balbuciando impropérios. A mãe, ao contrario do pai, era bem-humorada, gentil e alegre, talvez por isso resolveu convidar-me para o almoço de domingo. Tímido, ressabiado, todo encolhido no sofá, lá estava eu, havíamos almoçado uma macarronada com frango, tubaína na mesa de fórmica azul. Agora sentado no sofá diante de um Silvio Santos preto e branco, deu –me uma violenta cólica intestinal, pedi licença para ir ao banheiro, levantei-me e corri.
Abri a porta , tranquei e sentei-me no vaso, quase sem tempo para abaixar as calças. Temi que alguém ouvisse o barulho, ao aliviar-me; foi como se uma brisa gelada passasse pelo meu corpo. Acalmei-me e procurei pelo papel higiênico, não havia papel; vasculhei o pequeno banheiro e nada. O que fazer? Abrir o chuveiro, não. Faria barulho, todos ouviriam. Chamar alguém, nem pensar. A pia, sim eu poderia lavar-me, enxugar-me com a cueca, e joga-la no lixo ou guarda-la no bolso.
Abri a torneira, inclinei-me para a frente,alcei o corpo de maneira que a parte suja alcançasse a água.
Com o esforço e o peso do meu corpo a pia não suportou, quebrou e caí sobre ela, os cacos afiados rasgaram a carne do meu traseiro, agora estou aqui esvaindo-me em sangue, todos estão batendo na porta preocupados com o barulho que ouviram.....
Em memória de Carlos Andrei de Carvalho.