DIÁRIO DE UMA PANDEMIA (Dia 60; Dia 61; Dia 62)
Dia 60
Mais uma vez as manchetes trazem as mesmas notícias: Pelo mundo afora estão pesquisando a possibilidade de uma vacina contra o vírus mortal.
O gênio humano acabará descobrindo.
Mas, como só eu sei, há outro caminho.
É só comparar os volumes de mortos nas áreas periféricas e nas zonas em que vive a elite social e econômica.
É só comparar o histórico de saúde dos pobres e dos ricos que morreram.
É só comparar, e tentar entender, o porquê de pobres morrem menos que ricos, tendo como causa mortis o vírus acusado de ser o causador da pandemia.
É só comparar a forma como as crianças dos ricos e dos pobres são criados.
É só comparar o que comem os ricos e os pobres, quando os pobres comem!
Se alguém se der ao trabalho de comparar, perceberá como o organismo dos pobres é mais resistente a inúmeras moléstias.
Não porque é mais resistente, mas porque se faz mais resistente, devido ao convívio constante com lixo, falta de saneamento, alimentação deficiente… na adversidade, e para sobreviver, esse organismo se faz mais resistente.
Tudo isso e juntamente o estilo de vida mais exposto às adversidades é o que produz um corpo mais resistente.
No mundo em que estamos vivendo estão se desenvolvendo duas novas espécies de ser humano: o homo opulentus e s homo miserabilis!
Em nossa sociedade, o mundo em que estamos inseridos, as taxas de mortalidade infantil entre os ricos é menor do que entre os pobres; mas os pobres que sobrevivem além da infância miserável, são mais aptos, pois mais resistentes a pequenas moléstias.
Se alguém comparar e procurar entender, poderá até dizer que Darwin estaria, nos dias atuais, assistindo a mais um passo evolutivo, não dos pássaros de Galápagos, que tiveram que se adaptar para sobreviver, mas do próprio ser humano, que está sendo fortalecido pelas adversidades.
Eles pensam que podem comprar saúde nas embalagens assépticas, mas o que estão consumindo é o enfraquecimento de uma geração.
Pensando nisso foi que inseri na concepção do vírus a condição da vida da população pobre. É a parcela da população mais apta a sobreviver para recriar o mundo humano, depois de uma catástrofe. É a parcela da população menos dependente das tecnologias e mais capaz de se adaptar às adversidades da natureza!
Por isso, embora possa atingir todas as pessoas, ele é quase inofensivo a quem cresceu na miséria e, ao mesmo tempo, é altamente agressivo para quem está embriagado com os produtos industrializados, limpos e saudáveis…
Tão saudáveis que seu corpo ficou mais vulnerável aos vírus seletivos, pois não se fortaleceu com as adversidades.
Minha vizinha também cresceu na favela.
Dia 61
07 de novembro de 2026
Finalmente! Hoje aconteceu!
Nas duas últimas semanas o Supremo Tribunal Federal analisou e, por um voto, deu ganho de causa à defesa. Os ministros, aos quais ele deu posse, entenderam que eram improcedentes os pedidos de afastamento do presidente.
Mesmo as acusações de crime comum!
O baixinho vibrou, quando saiu a decisão para o arquivamento do último pedido de afastamento.
Mas ele não está livre.
É verdade que conseguiu manipular o Supremo.
Mas tem muitos adversários no congresso.
De um lado o Supremo correndo contra a ética e a decência, sempre acatando os argumentos da defesa do careca e barbudo. Esse ser desprezível que, num jogo de cena ludibriou os eleitores e virou presidente. Jogo de cena porque se elegeu com base num falso discurso contra a corrupção.
Do outro lado o Congresso, pensando nas eleições municipais, ajuntou provas e argumentos e hoje aconteceu.
E hoje, juntando um emaranhado de artimanhas e acordos inconfessáveis, finalmente o presidente do congresso anunciou a data para a sessão em que o presidente será julgado pela casa de leis.
Será uma sessão conjunta da Câmara e do Senado.
A pergunta será: afasta ou mantém o presidente no cargo?
A imprensa e a Polícia Federal nunca trabalharam tanto.
O volume de delitos cometidos pelo presidente barbudo é grande.
Bastava um só, mas ele cometeu vários: problemas na compra de medicamentos; problemas na gestão de verbas para a saúde pública; denúncias envolvendo ministros, a mando do presidente; denuncias baseadas em gravações de reuniões ministeriais; denúncias sobre favorecimento das empresas de seus filhos...
Claro que ele nega tudo isso.
Seu gabinete da maldade disparou noticias falsas, tentando desqualificar o Congresso e a PF, mas o povo já não é besta.
Como já não tem mais maioria nas duas casas, a tese do afastamento passará com facilidade.
O único problema é que todos têm rabo.
E, da mesma forma que o presidente, rabo de palha.
Da mesma forma que o presidente é um bandido, os deputados e senadores também não são santos.
Então teremos que ver o que pesará mais: os interesses da nação ou os interesses pessoais.
É preciso que isso fique registrado pois o povo sabe que num jogo de bandidos, ninguém quer seu rabo pegando fogo. Então, mesmo que as provas e os discursos e as atitudes do presidente sejam abertamente criminosas…
Pode ocorrer no Legislativo o que ocorreu no Judiciário…
Pode acontecer de todos ficarem com medo do fogo cruzado e resolvam deixar tudo como está… pois todos querem preservar seus rabos!
Atualmente o povo já não acredita mais nas falas do gabinete da maldade.
Mas também não acredita nos deputados e senadores…
Nem nos juízes!
O povo acordou! E cansou de ser chamado de bobo.
Ou será que sou eu que estou sonhando que o povo acordou e fará… sua parte!
Dia 62
10 de novembro de 2026
Quando cheguei do mercado, hoje à tarde, procurei meu celular. Eu o havia esquecido no banheiro, quando fui tomar banho para sair.
Três chamadas perdidas, da minha vizinha.
Uma mensagem gravada.
Na mensagem ela me informa que já comprou passagem pra retornar.
Os relaxamentos do isolamento lhe permitiram viajar
Vibrei com a notícia. Tentei ligar, mas não completou a ligação: “celular desligado ou fora de área”, diz a voz robotizada.
Deve estar a caminho.
Ouvi novamente a mensagem da vizinha.
Era a fala magisterial da professora de história: “nesses dias sem poder sair e sem poder viajar e sem poder sair de casa, entendi a angústia dos hebreus, no Egito antigo: presos dentro de casa, sem poder sair para não serem atingido pela praga do anjo exterminador”.