Mensagens automáticas, medo de palco ou: Tenho imaginação pra mudar de mulher, mas não quero.

Confiei. Confiei no que eu sentia, confiei no salvamento automático em nuvem, confiei que com 12, ia saber recitar Carlos Drummond pruma platéia cheia de gente. Tá, não sei se tinha tanta gente mesmo, mas vamos falar que sim, um draminha é bom, sempre bom, faz bem pro texto.

Esse texto é sobre confiar, confiar e falhar. Começa comigo anteontem, vai prum anteontem de 10 anos atrás e volta pra algum lugar.

Ok, não faz sentido nenhum dar um referencial, já que esse texto estará perdido no tempo e no espaço, mas não importa, o que importa é que me coloquei em frente ao computador, depositei quantidades hiperbólicas de café na xícara e dei play em "Dois amigos, um século de música". E enquanto mistérios pintavam por aí, eu era iluminado pela tela do computador e tentava terminar o maldito trabalho de comunicação.

Ouvi o disco inteiro, mais café, tecla. Escuta, bebe, escreve. Pausa. Escuta, bebe, chora, escreve. Lembra do jeito que ela enrola uma mecha do cabelo com o indicador. Tecla, café, escreve. Ao fim já eram 5 da manhã, e eu parecia tão mecânico e esotérico que você poderia entrar em casa, me ameaçar, colocar um disco de "Jão" pra tocar... não, pior, Anavitoria. levar tudo embora, que eu ia dizer apenas:

"só não bate a porta quando sair, tá?"

Eu estava assim. Tive cinco horas de sono, um sono tão fino que evaporou e me fez passar o dia reagindo com meneios e frases pré fabricadas. Mas isso não é o pior, o pior é que eu fiz todo o meu ritual diário complexo e previsível. Vocês também tem isso? (Digam que tem se não vou ficar me achando um maluco)

Uma sequência de ações que fazem de manhã, quase que intrínsecas, como se pra manter algum senso de ordem. Acordo, passo meia hora inerte, as vezes na cama, ou no meio do corredor, num aluamento, num atrapalhar da passagem, observar da parede descascada, alheio as brigas da casa, de tudo. Pai chama isso de "Fazer o download"

- Fazendo o download da alma, filho?

Respondo com algum grunido incompreensível.

Depois disso, depois que meus átomos já se fincaram por completo no chão, coloco alguma coisa pra tocar e escuto o ecoar da música entre o box e eu, enquanto tomo banho. Seco, troco, olho o Twitter, tomo café.

Todo esse processo pode durar entre 30 minutos e 3 horas, num alargar de tempo absurdo que ignora a biologia, a física, lógica e todo o resto. E aí eu fiz isso tudo, pra só aí abrir o computador com o arquivo e receber um pop-up na tela:

"Gabriel, encontramos problemas pra salvar seu arquivo. É possível que seu progresso seja perdido."

Spoiler: Foi sim

Percebe a audácia? O tom de deboche? Ele não diz um "Então irmão, perdeu tudo, fudeu. Vai ter que recomeçar" Não. É sempre um tom evasivo, protocolar, pseudo-sentimental, mas eu preferia, preferia as palavras duras e secas do não. Perdão seja lá quem tenha escrito esse aviso, mas você está errado, tem que ser sincero, tem que...

Ok, vou ali buscar um café.

Tem que dizer as coisas como quer, se não vai acabar preso num limbo emocional em que alguém vai te ligar no meio da noite e te dizer:

"Olha, encontramos problemas para te amar, é possível que seu progresso seja perdido" Ou melhor, nem vai ligar, vai deixar o silêncio suspenso no ar e você que se vire.

Do que eu tava falando mesmo? Ok...

Silêncio no ar, você que se vire, confusão sentimental, e isso nos leva a próxima coisa que provavelmente não tem nada a ver com a anterior, mas no fim vai acabar tendo, como disse uma amiga minha sobre a minha última crônica "Gostei de como vc interligou omelete queimada com negligência parental e com sofrência"

Devo ter o raciocínio lógico de um peixinho dourado, um nervoso que mata, uma saudade que destrói, a capacidade de emendar e costurar as coisas que talvez só façam sentido pra mim.

Pois bem...

Era uma apresentação da escola, uma daquelas de final de ano ou em data importante, um teatro gigante... é, nera exagero não, tinha muita gente mesmo. E eu fiquei de recitar um trecho de oito linhas, veja bem, oito linhas. Não me pediram pra ler o original em Russo de crime e castigo, não me pediram nem pra criar nada, era só chegar lá, falar e ir embora.

8 LINHAS.

Corta a cena:

O meu eu nervoso, pai na plateia, um microfone na mão, a cara de terror da minha professora do fundamental como quem diz "Caralho, não decorou o texto?"

Não.

Por mais que eu tenha lido no mínimo uma centena de vezes, meu cérebro viu uma oportunidade maravilhosa pra esquecer, o momentinho perfeito pra sacanear...( ele tem dessas.)

Uma coisa interessante sobre esquecer, palcos e silêncio é que a medida em que ele existe, ele vai existindo mais. As pessoas se entreolhando, como quem se perguntam "É isso mesmo? Ele não tinha que falar algo? Faz parte do show? Essa é a hora que a gente aplaude?"

E vou te falar, eu não sei se eu era uma criança sádica, criativa, doida ou o que, mas entre o pânico de estragar tudo e o silêncio de já estar estragando tudo, me deu uma vontade de rir absurda. Me imaginar tirando as pessoas do torpor, quebrando o protocolo, causando um mini caos naquela polidez de apresentações escolares foi engraçado.

E aí o leitor que eu invento, essa vozinha na cabeça, vai chegar e dizer "hipócrita você, hein. Julgando a pessoa da mensagem automática, enquanto nem tu sabia bem o que dizer, e olhe que era só ler um texto."

Sim. Eu tenho pra mim que todo escritor é um hipócrita por natureza. Adicione uma dosezinha de ego, sarcasmo, consciência das coisas e autocrítica, ansiedade e uma pá de coisas que nem Freud explica. De modo que quando acabar, ele vai saber disso dum jeito tão íntimo, vai saber tanto das coisas erradas nele e nos outros, que vai ter a cara de pau de escrever.

Ou vai ver a gente não tem nada melhor pra fazer mesmo.

Vai ver essa é a única coisa que sabemos fazer pra matar o silêncio, afogar essa agonia que se mistura com seu eu, que esquece, que continua porcaria. Não sei. Talvez eu ainda seja uma criança com medo de palco tentando ler essas 8 linhas aqui:

"Fosse eu rei do mundo

Baixava uma lei

Mãe não morre nunca

Mãe ficará sempre

Junto de seu filho

E ele, velho embora

Será pequenino

Feito grão de milho"

Tentando e não conseguindo. Sendo tragado pelo silêncio de uma mensagem automática, madrugada mal dormida, de relações confusas, puídas. Quem sabe um dia eu paro de precisar de plebiscito, não me calo, me cito, não me perco na fumaça do estalo.

Mas agora eu tenho que ir, meu ponto de ônibus tá chegando, e eu tô atrasado.