Sem heroísmo nenhum

Deitada ao contrário no sofá da sala, com os pés para cima, observo as nuvens se formarem e se desmancharem como fumaças de sonhos: o vapor se agrupa, adensa-se e esvai-se com a mesma facilidade. Segundos atrás, este trecho de céu que observo estava coberto de nuvens, mas logo o vento as soprou suavemente e o céu se tornou azul novamente. Diante da volatilidade das nuvens, eu chorei, mas não por elas.

Ontem foi dia dos professores e ganhei de uma aluna um chaveiro com a legenda "heróis não usam capa, eles ensinam". Já houve um tempo em que eu achasse fantástica essa comparação, embora só a ouça no dia dos professores, porém hoje ela me cobrou de algo que eu não sei se sou capaz de dar: o heroísmo. Acordei com a notícia de que um ex-aluno havia perdido a vida em circunstâncias pouco esclarecedoras. Há alguns meses, soube por um professor amigo que este jovem estava em situação de rua, fazendo uso de drogas. No exato momento em que ele me disse isso, um flash invadiu minha mente: vi uma professora jovem, recém-contratada, com um estudante da oitava série que sempre queria ajudá-la a carregar os livros. Este pequeno percurso entre a sala de aula e a sala dos professores geralmente era regado à conversas profundas ou risadas. Em um destes dias, o garoto soltou essa: "Teacher, você não quer me adotar, não?". Respondi que ele tinha família, até perguntei se a família dele não era legal. Com olhos baixos ele disse apenas "Tenho, teacher, mas é complicado.".

Aqueles olhos baixos somados aos dizeres no chaveiro me assombraram o dia todo. Minha pouca idade e a inexperiência de início de carreira não me permitiram perceber o grito de socorro implícito no questionamento daquele garoto. Irritada, percebi que não tenho nada de heroico: sou apenas uma pessoa comum, que escolheu uma profissão dentre tantas outras. Quando estava na faculdade eu sonhava em mudar o mundo, mas não mais. Aqui, deitada no sofá, enquanto as lágrimas deslizam por minha face, eu só penso que falhei.

Quando contei o ocorrido e a lembrança à minha diretora, ela me disse que jamais saberemos tudo o que se passa com cada um de nossos estudantes e, que, infelizmente, jamais conseguiremos alcançar a todos, apesar de nosso esforço. Essa verdade me atingiu com a mesma violência da notícia da morte. Como posso estar com estes jovens todos os dias e não perceber o grito de socorro enterrado em suas gargantas e olhares? Sem heroísmo nenhum, decidi tentar. Pelo Lucas, de olhos cor de jambo, que eu gostaria que ainda estivessem brilhando.

Olhando as nuvens se agruparem e espalharem novamente, secando as lágrimas, peço perdão e torço para que ele tenha encontrado nesta vastidão azul um lugar onde nada seja tão complicado assim.

Lilian Blasioli
Enviado por Lilian Blasioli em 07/11/2022
Reeditado em 09/11/2022
Código do texto: T7644576
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