O ápice de uma tragédia particular
Foi tudo tão horrível. Morrer atropelado nem foi o ápice de sua tragédia particular.
Intuitiva e estatisticamente, suspeitava que cedo ou tarde seria sua vez de receber a visita de um motorizado nos peitos ou na calçada de casa. Tinha o perigoso costume de andar no meio da rua, dando de ombros aos carros e buzinas, e o de sentar-se à beira da calçada de casa, localizada em rua movimentada de uma pequena cidade motorizada.
Ali demorava-se, às vezes consultando o celular, às vezes cochilando, às vezes dormindo mesmo. Nunca sabíamos ao certo, pois dormia de olhos abertos e cochilava também de olhos abertos. Tinha um estilo raro, logo se nota. Esse estilo raro, tão raro hoje em dia, o de quem parece saber o valor primeiro da vida e que, para usufruí-lo, é capaz até de abrir mão de algumas conveniências sociais, é capaz de correr riscos.
E riscos, todos sabíamos, ele corria. Menos ele, que ignorava esse detalhe. Em uma recente tarde, um motorista não identificado, em alta velocidade, freou bruscamente o carro aos seus pés, e ele imóvel permaneceu, em sua branca cadeira de plástico. Ficamos muito preocupados com o nosso vizinho, mas ele nos garantiu que estava muito bem. Chegou, inclusive, a nos perguntar o que havia acontecido, o porquê de estarmos ali, uma dúzia de pessoas ao seu redor, apavoradas.
Parece que, no momento do quase acidente letal, ele dormia.
Outro dia, foi a vez de uma bicicleta desgovernada lhe fazer uma visita. Desta vez ele estava aparentemente acordado e ligeiro. Deu um pulo enérgico da cadeira. Felizmente nada lhe aconteceu. O veículo de duas rodas foi que levou a pior: um empeno no quadro e três pontos no condutor.
E eis que chegou o fatídico dia, em que nosso vizinho, como tradicionalmente fazia, trouxe sua branca cadeira de plástico para a beira da calçada, ajeitou-a com firmeza e nela sentou-se, com a coragem e o semblante dos sujeitos que sabem o valor primeiro da vida e que, para usufruí-lo, são capazes de correr os maiores e mais letais riscos.
O dia estava ensolarado, o céu extravagantemente azul, um casal de namorados passava, de mãos dadas, compartilhando um sorriso feliz, um bêbado lhe saudou "Bo-o-a-a-a tar-r-r-de-e-e!", no rádio um trecho de uma canção tocava; o trecho dizia "Viver é melhor que sonhar". Foi então que um estrondoso barulho pôs fim à sinfonia. E lá fomos nós, meia dúzia de vizinhos, apavorados. Chegamos e logo percebemos a tragédia. A branca cadeira de plástico separada de seu dono, para sempre, para sempre, para sempre, sob o testemunho de um céu extravagantemente azul e o trecho de uma canção que dizia "Viver é melhor que sonhar".
Foi tudo tão horrível.
Constatou-se, então, que morrer atropelado nem foi o ápice de sua tragédia particular.