Carta ao meu amado
Nunca senti necessidade de expor-lhe meu sentimento; a única vibração que não interferiria nesse sentimento era a vibração do silêncio. E você entendeu isso desde o princípio.
Quando eu ouvia Joe Dassin cantando Et si tu n'existais pas, você sabia o porquê, mesmo que nunca eu o tivesse revelado.
Você também sabia o porquê de eu ouvir a voz rouca de Billie Holiday interpretando The man I love, de Gershwin. Eu sabia que você sabia que eu sabia. Jamais uma palavra precisou ser emitida.
Quando você vinha a mim, lançava seu olhar penetrante sobre os meus olhos atônitos, segurava-me ternamente pelos braços, sentia todo meu tremor e me abraçava forte, comprimindo-me contra seu corpo, roçando sua barba negra e espessa na minha face, nunca se ouviu uma palavra sequer.
As lágrimas que escorriam dos meus olhos e dos seus olhos escandalosamente verdes, faziam-no no mais absoluto silêncio para preservar o mistério que entre nós se formara.
Diante desse nosso mistério, só manifestado a nós, calávamo-nos, contemplávamos e todas as dúvidas se dissipavam. E em algum lugar desse infinito universo uma explosão formava uma nova galáxia.
O êxtase ao que você conseguia me elevar jamais fora convertido em ruído, mas nós nunca choramos tanto, em tão pouco tempo por tamanha felicidade. Bastava seu olhar sobre mim para me arrebatar e nós nos elevarmos rumo às nossas mais altas aspirações.
Certas músicas têm, para mim, poder semelhante ao seu, embora o seu poder só se manifestasse no reino do silêncio.
Agora, ao ouvir Jessye Norman interpretando as Quatro Últimas Canções, de Richard Strauss, surgem lágrimas nos meus olhos. As sucessoras das lágrimas que um dia foram para você.
Quando ouço Kathleen Battle interpretando Morgen, de R. Strauss, as lágrimas de desespero encontram alento nas tantas outras lágrimas que já foram as nossas.
Quando ouço Kathleen Battle interpretando Nacht und Träume, de Schubert, minhas lágrimas são para o silêncio do dia de hoje. Um silêncio profundo para lágrimas pesadas.
E quando ouço Kiri Te Kanawa interpretando Befreit, de R. Strauss, a exaustão me faz produzir lágrimas para libertá-lo e deixá-lo ir. Uma torrente de lágrimas.
As minhas lágrimas não mais encontrarão as suas. Resta-me a música; só na minha mente e no meu coração que ainda está inundado das suas lágrimas.