Cecília… de minha biblioteca...

Cecília… de minha biblioteca...

Cecília Meireles escreveu a crônica "Do diário do imperador", por volta do comemorado Sesquicentenário da Independência (1972), em pleno período da ditadura militar iniciada na revolução de 1964. Certo é que este livro foi impresso em 1975 pelo Círculo do Livro, temos então até hoje, 2022 - Bicentenário da Independência, cerca de 150 anos desse diário de D. Pedro II.

Como bem podemos notar, as observações da Cecília continuam bem atuais... Assim, complemento esses meus rabiscos, apenas alterando o finalzinho no que se refere à contagem do tempo de nosso atraso: ..”Nesse particular, estamos com um século e meio de atraso”...

Acrescento apenas a pergunta: E quando esse povo vai acordar para a verdadeira Ordem e Progresso, que tantos ufanam, amparada nas mesmas necessidades e observações de D. Pedro II?

Boa Leitura

Marco Antonio Pereira

02/11/2022

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DO DIÁRIO DO IMPERADOR

Cecília Meireles

Acabo de ler o diário do Imperador Dom Pedro II, escrito exatamente há um século. Por essas pequenas anotações, pode-se acompanhar um ano de sua vida, amostra suficiente das dificuldades com que o Brasil tem lutado sempre para entrar no bom caminho, para melancolia e desânimo de seus mais devotos servidores.

Assim mesmo se exprimia o imperador: ”Muitas coisas me desgostam; mas não posso logo remediá-las e isso aflige-me profundamente. Se ao menos eu pudesse fazer constar geralmente como penso! Mas para quê – se tão poucos acreditariam nos embaraços que encontro para que eu faça o que julgo acertado! Há muita falta de zelo, e o amor da pátria é só uma palavra – para a maior parte!”.

A respeito de certo boato que se espalhara, comenta, com desgosto: ”Tudo inventam; e triste política é a que vive de semelhantes embustes quando tantos meios honestos havia de fazer oposição; mas para isso é necessário estudar as necessidades da nação – e onde está o zelo?”

(A palavra “zelo” ocorre numerosas vezes nesse diário: é essa “dedicação ardente”, essa “diligência”, que o imperador não encontra na maior parte dos que, no entanto, por função, estão encarregados dos problemas nacionais. E isso lhe causa sofrimento.)

Os moços de hoje deviam ler estas palavras, e entendê-las: “Na educação da mocidade é que sobretudo confio para regeneração da pátria. Gritam que se não pode chegar ao poder senão fazendo oposição como a fazem; mas, quando no poder, não sofrem do mal que fomentaram? A imprensa é inteiramente livre, como julgo deva ser, e na Câmara e no Senado a oposição tem representantes; mas que fazem estes pela maior parte?”.

Os homens públicos deviam também meditar sobre esta passagem: “...Mas tudo custa a fazer em nossa terra e a instabilidade do ministério não dá tempo aos ministros para iniciarem, depois do necessário estudo, as medidas mais urgentes. É preciso trabalhar, e vejo que não se fala quase senão em política, que é, as mais das vezes, guerra entre interesses individuais”.

Há nesse pequeno diário, de um ano e cinco dias, variadas observações sobre agricultura, teatro, ciência, educação; impressões de visitas a diferentes estabelecimentos educacionais e industriais; breves apontamentos sobre ministros e personalidades do tempo. Terminada a leitura, parece-nos que estamos na mesma, que o século não passou; apenas as pessoas mudaram de nome. Tantas lutas mesquinhas em todos os bastidores! Tantas rivalidades, invejas, palavras capciosas, intriguinhas sórdidas! E o imperador, há cem anos, escrevendo: “A falta de zelo; a falta de sentimento do dever é nosso primeiro defeito moral. Força é contudo aceitar suas consequências, procurando, aliás, destruir esse mal que nos vai tornando tão fracos”.

Dom Pedro II deixou fama de sabedoria, e comparando-se as modestas (mas importantíssimas) observações de seu diário com a verborragia demagógica de que ainda somos vítimas, e dos males que a acompanham, compreende-se que muita gente desesperada até pense em tornar-se monarquista.

Mas convém não esquecer estas palavras do próprio imperador: “Nasci para consagrar-me às letras e às ciências; e, a ocupar posição política, preferiria a de Presidente da República ou ministro à de imperador”.

Sejamos, pois, republicanos, democratas, estudiosos, honestos, justiceiros, e cultivemos o zelo de bem servir a pátria, aos homens, às instituições. Neste particular, estamos com um século de atraso.

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Extraído do Livro “Escolha o seu sonho”, de Cecília Meireles – Edição do Círculo do Livro - 1975

“As crônicas reunidas neste volume foram extraídas dos programas “Quadrante”, da rádio Ministério da Educação e Cultura”, e “Vozes da Cidade”, da rádio Roquete Pinto.

MARCO ANTONIO PEREIRA
Enviado por MARCO ANTONIO PEREIRA em 02/11/2022
Código do texto: T7641479
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