S A R A C U R A S
PEQUENAS CRÔNICAS DO COTIDIANO
SARACURAS
Impressionante como nosso pensamento voa longe e um som,um cheiro,um termo proferido por alguém,tem o poder de provocar este " voejar " no mundo das lembranças.
Retornando agora de um supermercado, imerso neste fim de domingo carregado de uma certa melancolia.
À minha esquerda, nuvens ligeiramente rosadas, de quando em quando brilham aos relâmpagos e trovões muito distanciados delatam tempestade em algum espaço que desconheço.Pessoas fazem caminhadas pelo parque e à minha direita o céu tem cores indescritíveis depois de uma chuva passageira de a pouco.
O ar é de uma pureza infinita.Pessoas retornam de seus passeios e eu sigo com minha sacola de pão.
A pouca distância...
Uma ponte, algumas casas, janelas iluminadas - feito olhos noturnos a espiar a boca da noite - e elas...
As saracuras numa tremenda algazarra.
Os trinados são esfusiantes !
É como que a noite esteja a lhes prometer uma espécie de orgia.
Paro por instantes, para ouvi-las e num átimo de momento sou aquele pirralho sentado ao colo de vó Maria, relutando para ir pra cama.
Porém no embalo daquela velhinha eu sempre acabava me rendendo ,e a sua canção de ninar nascida dos potreiros, das sangas, das aroeiras e luares trazia a sonoridade das aves ribeirinhas, em especial das saracuras.
Rodopia-me agora na memória aquele refrão - imitando àqueles pássaros - cantarolado em suave,como que fora as longínquas saracuras da minha existência.
"Quebrei três potes///Num sôco só///Quebrei três potes..."
Uma estranha sensação de paz faz-me sentir um feto,aquele a quem se espera,acarinhado pelas mãos de mãe.
O ruído estridente do portão de ferro afasta-me do devaneio.
A janela de minha casa junta-se aos olhares investigativos da noite que espalha-se sobre a cidade.
A orgia das saracuras ecoa agora distanciada feito a voz amaciada de vovó.
Fecho o portão.
Uma estrela precoce me espia e eu vou adentrando com a sacola de pães.