Trem derradeiro estampado na parede
A empresa ferroviária me transferiu para chefiar uma pequena estação de trem na cidade Mari, em 1988. O primeiro mariense que se aproximou de mim tinha traços orientais e um bom humor profissional. Não por acaso, Alexandre carregava a alcunha de China. Locutor de carro de som, palhaço de pastoril, animador de festa de criança, comunicador capaz de conduzir até velório com alegria e polivalência de um mestre arlequim brincante nordestino. China é um desses artistas populares que são a expressão da vida, “no que ela tem de instigante, sensível, humana. O artista de rua contribui para bloquear, por um momento que seja, a dor no planeta terra e estancar o curso da violência”, conforme ensinava mestre Zezito, o palhaço Pitombeta, que já não ocupa esse picadeiro terreno.
China continua na ativa, cultivando a arte da simpatia e criando sua família no ofício de encantar o mundo. Seu filho, Alexandre Júnior, a quem não conheço pessoalmente, tornou-se artista visual. Como pintor de rua, Junior Pintyartes, marca escolhida pelo artista para assinar seus trabalhos, tem feito uma espécie de ponte que liga o passado ao presente em sua comunidade. Seguindo por esta trilha, Junior Pintyartes retrata painéis a céu aberto com figuras do mundo das artes em sua cidade, mamulengueiros e artesãos, poetas, brincantes e músicos, criadores que fizeram a história de Mari são retratados nas pinturas do filho de China. Talvez até inconscientemente, ele democratiza o aceso à arte, tendo como principal traço o cuidado de conceber nas obras que executa o vínculo dos marienses com sua comunidade.
Recentemente o jovem pintor envolveu seu trabalho com meu passado naquela cativante e amena urbe, uma espécie de antessala do brejo paraibano. Junior Pintyartes confeccionou enorme mural retratando uma locomotiva. Elaborou seu trabalho na parede da velha estação onde fui o último chefe dos caminhos de ferro naquela região. Um dia, recebi comunicado de que o trem não mais apitaria na curva. Deixaria de trafegar por falta de investimento e vergonha na cara dos que tiraram a força da locomotiva brasileira para servir a interesses alienígenas do imperialismo. Esse debate não cabe agora, quando vejo foto do mural na estação de Mari, a locomotiva chamando a atenção dos que entram na cidade, evocando o envolvimento econômico e cultural intenso que a ferrovia exerceu. O próprio Junior Pintyartes talvez jamais tenha visto uma locomotiva entrando no pátio da estaçãozinha de sua cidade. É como se o artista compactuasse com a memória coletiva de sua comunidade em seu processo de interatividade social.
Ao dialogar com a sensação de pertencimento, a arte do Alexandre Júnior mexeu comigo neste mural ferroviário, porque me aproximou da relação profissional e social que tenho com a estrada de ferro. Um dia me chamaram de poeta. “Sou ferroviário”, repliquei. Porque não era simplesmente um emprego. Era paixão. Está ali, na parede da antiga estação, o símbolo de uma época em que a locomotiva foi o indutor do desenvolvimento. A pintura realista de Junior Pintyartes é bastante concreta, sem firulas subjetivas. Uma máquina a diesel estacionada na plataforma da estação, em todo seu fascínio e magnetismo, tendo ao lado a “agulha da chave de mudança de via”, equipamento que direcionava o comboio, transferindo a composição para outros trilhos.
Na minha cabeça, enquadra-se bem a ideia de que a concepção canalha dos governos sobre caminho de ferro jogou esse modal para uma “linha morta”, desvio sem futuro. Ficou apenas o ferroviário com sua barra de bitola na mão, querendo medir suas emoções anacrônicas. O mural do filho de China acionou a complexa e duradoura sensação de entrar numa “curva deslocada” que todo ferroviário sente, ao recordar seu mister. Esse termo ferroviário refere-se à curva que saiu ou foi movida da posição primitiva, por qualquer causa ou objetivo. Vida de ferroviário é assim mesmo. Mais cedo ou mais tarde, todo mundo sai da linha. Descarrila. A obra do rapaz de Mari serve como “esforço de tração”, outro termo ferroviário que significa a força necessária para mover um trem sobre os trilhos. No caso, aciona nosso mecanismo de memória e reflexão