Confidência em dia de eleição

Domingo, trinta de outubro de 2022, confiro o horário pelo relógio do computador. Percebo que já deveria ter saído para participar de um dos eventos mais representativos da democracia, no caso, a eleição para governo do estado do Rio Grande do Sul. Estado onde tive a oportunidade de escolher alternativa não identificada com os polos dessa polaridade insana.

Um esbarrão improvável em outro eleitor, aparentando uns trinta anos, foi o que me proporcionou o rico material para a prática dessa amadora atividade de escrever.

Pedi-lhe desculpas de forma convincente e, como não me respondeu exclamativamente “magina”, afirmei imediatamente tu não és de Flores da Cunha.

A resposta, num estranho tom de súplica, veio numa forma de barganha: vamos até aquela praça, sentar num de seus muitos bancos que, além de lhe responder sobre minha naturalidade, vou lhe confidenciar, caso tenha disponibilidade, sobre autoconhecimento.

Tenho a impressão que quem se dispõem a escrever, tem permanentemente a expectativa de encontrar material que justifique o prazer. Era tudo que esperava.

Por perceber tratar-se de confidência e por ter idade para ser seu avô, segurei-lhe o bíceps desenvolvido, como solicitando ajuda para caminhar, e sorrindo, disse-lhe, “sou só ouvidos”.

Logo ao sentarmos, disse que estava ansioso para confidenciar um “estalo psicológico” que tivera, antes de se dirigir à seção eleitoral e que incluiria sua naturalidade.

E assim iniciou sua confidência: desde que me entendo, a violência além de me trazer sensações e sentimentos muito desconfortáveis, sinto nojo quando sou obrigado a presenciá-la. Mas, quando comparo com a naturalidade e até mesmo alegria de outros, quando assistem a filmes, a notícias, a prática de esportes violentos, percebo que sou exagerado e sempre tive vontade de procurar profissionais da área para explicarem as razões.

Continuou: acho que fui meu próprio profissional, pois penso que o “insight” (estalo mental) que tive, revelou as razões. Sou filho de militar de uma das armas nacionais, nascido e formado no Rio de Janeiro que, depois de alguns anos, foi transferido para Rio Grande, município gaúcho. Rio Grande foi onde minha mãe nasceu, cresceu e se formou em pedagogia. Contava ela que era impossível resistir aos encantos de papai. Casou e, devido o retorno de papai ao Rio, para lá se mudaram onde um ano depois nasci.

Quando tinha sete anos, meus pais se separaram e eu e minha mãe voltamos ao Rio Grande, onde vivi até, por motivos de proximidade ao trabalho em Caxias do Sul, mudar para Flores da Cunha. Ano passado, fui designado para dirigir filial da empresa no Rio. Voltei à terra natal, e mais pertinho de meu Botafogo,

Quando criança, tenho lembranças horríveis de discussões de meus pais, que se encerravam com o espancamento de minha mãe. Lembro que, quando começava a ouvir a discussão de meu quarto, juntava o travesseiro ao peito e pedia para que Deus parasse a discussão e evitasse o final de covardia e violência.

E prosseguiu com sua narrativa catártica: pois bem, além das declarações ameaçadoras do atual presidente, hoje, lendo as mensagens no celular existia a indicação de movimentos de baderna com possibilidades de consequências violentas, se o resultado não fosse a vitória de Bolsonaro.

A partir daí, fui tomado pelas indesejáveis reações exageradas em sensações e sentimentos. Nesses momentos, sou tomado por desespero e suplico que essas reações se esqueçam de mim.

Demonstrando alívio, conclui sua narrativa: fui tomado por “insight” indicador de relação de causalidade, objetivada numa reação condicionada. Aquelas reações horrorosas, sentidas repetidas vezes e relacionadas à violência paterna, geraram um condicionamento. Aquela violência da infância condicionou esse meu estado de desarmonia emocional. Imediatamente, após o “insight” esse indesejável estado desapareceu. Espero que tenham me esquecido para sempre.

Na tentativa de dissimular ao jovem confidente a grande emoção que fui tomado, confessei-lhe que, na ocasião do esbarrão, devido estar com a camisa da seleção brasileira, o identifiquei como eleitor de Lorenzoni e Bolsonaro, mas depois de sua declaração de aversão à violência, tenho certeza que votou em Leite e Lula.

Sobre sua camisa disse-me: assim como nos jogos, mesmo no "Engenhão", do Botafogo com outro time de grande torcida, nunca vou com a camisa do Glorioso, nessa eleição dissimulei vestindo a camisa da seleção brasileira, que veste todos os brasileiros.

Felicidades para ti jovem botafoguense e muito grato por me honrar com tão íntima e rica confidência. Admirável esforço em autoconhecer-se.

J Coelho
Enviado por J Coelho em 01/11/2022
Reeditado em 01/11/2022
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