Sorte

Escrevo de uma prestinaria no sul do país. O gosto do gengibre ainda estala na língua, veio misturado com limão e água de coco. Antes de fazer o pedido, um bolo indiano flertou comigo. Da vitrine limpinha, ele se ofereceu generoso, ostentoso, galanteador, cheio de si. Saber-se delicioso é da sua natureza. Neguei, mas vou levá-lo comigo mais tarde.

Escrevo de um lugar que jamais imaginei conhecer. E aqui estou, como quem se sente confortável na situação, mas tenho cara de turista. E é o que sou mesmo. Turista que vez por outra questiona os caminhos que a trouxeram aqui. Já sei que não foi sorte.

Ontem minha mãe me perguntou se eu acredito em coincidência. Acho que coincidência é uma resposta rápida para não se investigar mais a fundo. Pensar sobre o assunto pode ser frustrante. Se não se encontra resposta para explicar o "mistério", coloca-se na conta da coincidência e fica tudo certo. Ninguém questiona. É até um pouco poético.

Não. Eu não acredito em coincidência. Estou aqui, agora, porque uma máquina com engrenagens cuja tecnologia escapa ao meu entendimento de terráquea mediana, trabalha para cruzar caminhos e expandir fronteiras terrenas, afetivas e mentais.

A sorte tem como essência a condição de escolher estar. Não se corre atrás da sorte. Sua ocorrência é como a aparição de uma estrela cadente. Num momento, nada há de novo no céu, e de repente se pode fazer um desejo. A sorte não é o desejo, mas sim a possibilidade de fazê-lo. Realizá-lo, porém, é da ordem do esforço.

Por sua vez, a fortuna, uma vagabunda por natureza, por nada se julga responsável. Joga nos ombros do destino o fado de todos os desatinos impensados. Um diabinho em fase de treinamento não é tão nocivo quanto nossos próprios pensamentos. O que fazemos a nós mesmos é da ordem do instinto. Primeiro a gente sente. Regulariza a temperatura da situação que nem cachorro, pela língua. A língua que lambe a própria ferida. e quer ter sempre a conversa que nem precisava sair da garganta. Temperança? Quando vi, já falei. É criança né. Criança que acredita em sorte e ignora que tudo acaba em morte.

Em uma mesa, há poucos metros da minha, uma mulher que se parece muito com a minha terapeuta fala com as mãos. Gesticula enquanto conduz sua conversa, sem se dar conta do par de olhos que a observam por trás dos óculos. É a máquina de engenho desconhecido trabalhando 24/7. Passo desapercebida pelo universo particular de todo mundo aqui. Invento enredos para os rostos que me enviesam um olhar perimetral pelo tempo do pouso de um mosquitinho no meu copo de suco quase vazio. Sorte a dele ser tão pequeno e inofensivo. A sorte escolheu estar a serviço da sua condição de mosquito e do seu papel no ecossistema da máquina de tecer enredos.

E quando é que isso vai acabar? Minha estadia, o resto do dia, o trânsito até o destino do pouso, o fim deste texto. O começo de um novo texto acaba quando paramos de mexer na primeira frase. A frase nunca está pronta, mas o que fazemos a ela é da ordem da sedução. Se eu tiver sorte, e uma estrela cadente cruzar o céu nesta noite, meu desejo será que a primeira frase de todos os meus textos sejam como a vara de um pescador profissional em um pesque e pague de final de semana.

Nem graça vai ter escrever já sabendo que serei lida. Mentira. Isso é uma coisa cuja graça se faz perpétua.

Lorena de Macedo

@lireruaitura