Frigideiras, crianças esquecidas em carros, e mulheres.
Tomate, pimenta de cheiro, Azeitona. Azeitona? Dois ovos, queijo que sobrou.
Tentativa frustrada de omelete.
Hoje não consegui dormir, devia estar dormindo, mas estou escrevendo, estou... caralho! Queimou o fundo. Queimou o fundo e tive que tirar com a colher, aí foi se embora a coesão, virou uma massaroca, uma massaroca de ansiedade, depressão... não, calma. Estou pulando os assuntos, calma lá.
Respira... leia o próximo parágrafo.
Já pararam pra pensar o quão fácil as coisas podem dar errado? O quão difícil é manter tudo como está? É sério, sério, eu achei que eu tinha entendido, achei que era só manter numa temperatura razoável, não olhar demais, como se só o ato de olhar fosse fazer tudo dar errado. Equilibrar a quantidade certa de sal, não deixar grudar muito e esperar. Mas não, não.
E mesmo assim sempre parece que no fim sobrará uma frigideira com pedaços carbonizados no fundo e difícil de limpar. Não importa o quanto enxágue, raspe com uma colher até o barulho estridente de metal doer a cachola, parece que tudo é em vão.
Meu deus, não. Estou me perdendo nas analogias. Mas é difícil, difícil não se perder. É difícil entender as coisas quando, onde, porque e como são. Vou contá-los uma história, talvez sirva pra entenderem um pouco quem é esse serzinho que lêem.
Quando eu era criança certa vez, vale dizer eu era uma mistura de criança ensimesmada com extrovertida, não sei, acho que entendi desde cedo que eu tinha que me mover junto das coisas. E ai ao mesmo tempo, eu era aquela criança que podia ser facilmente tragada pelo escuro de um carro, não entrar em pânico, e procurar algo pra ler antes que o oxigênio acabasse.
Devíamos ter ido prum aniversário, alguma festa, não lembro. Fomos eu, mãe, meus avós por parte de mãe, Juba minha irmã, e Wênia, a mais velha. Eu adorava andar no carro deles, era um desses 4x4, bancos de couro, automático, painel com luzinhas que brilhavam a noite e um cheiro de ar condicionado. Sabe? É como se o oxigênio fosse diferente ali dentro, como se tivesse algo de especial nas moléculas geladas, mas que só faz sentido na cabeça de uma criança.
Voltamos pra casa, e na época, "Bibinha", meu avô, guardava o carro na oficina dele, que ficava nos fundos. Eu sempre fui uma criança bem quieta, adorava quando chovia no vidro fechado, que aí eu imaginava as gotas correndo pra ver quem chegava ao final, ou...ou, ver formigas erguendo um grão de açúcar excessivamente maior do que elas, e daí criar toda uma história, ficar absorto nisso.
Num desses ensimesmos eu escuto um som de "click" da porta pesada fechar, percebo a luz do carro desligar e me noto ali dentro.
"Caramba, me esqueceram"
Foi exatamente isso que pensei. Mas assim, eu não pensei nisso e entrei em pânico, chorei, fiquei com raiva, ou qualquer outra reação normal que uma criança de uns...9 anos poderia ter. Eu simplesmente fiquei ali, imóvel, inerte. Esse intervalo de tempo deve ter durado bem menos na vida real, mas que pra mim foi algo enorme. E daí eu tive uma ideia.
Uma idéia genial.
A) Gritar por ajuda?
B) Usar a buzina do carro pra chamar atenção?
C) Hiperventilar, socar o vidro e me alimentar da espuma do banco até chegarem os bombeiros?
Errado. Nenhuma dessas. Eu lembrei que atrás do banco do motorista tinha uma espécie de bolso em que guardavam revistas. Liguei a luzinha de teto, peguei uma qualquer, e comecei a folhear um fascículo sobre jardinagem. Até hoje me lembro: "dê forma ao seu canteiro de arbustos" ou "Ferramentas indispensáveis para jardinagem"
Até hoje me assusta o fato de que eu me deparei com aquela situação maravilhosa e agi com tamanho desprendimento "vão me achar, eu não vou morrer assim", pensei. É sério, pode parecer exagero, mas eu realmente tinha plena convicção de que eu não iria morrer ali, e se acontecesse, se acontecesse seria uma morte muito idiota.
Tudo estava escuro. A oficina era um galpão gigantesco com carros, concreto e maquinário, mas tudo havia sido encoberto pela ausência de luz. Estava pensando sobre isso esses dias, se isso diz algo sobre mim, se não.
Será que eu ainda sou aquela criança que realizou muito rápido que as coisas eram como eram, numa concretude aterradora, que talvez se eu gritasse e chorasse ia só perder tempo, energia.
Será que eu me importava mesmo sobre a ideia de morrer?
Até hoje não sei. Só sei que agora já são 3:00 acho que vou ter que jogar a frigideira fora, ao menos eu posso fazer isso com ela.
Tadinha, não, pera, agora bateu culpa. Imagine só todos os processos específicos de exploração e transformação da matéria prima, de fetiche da mercadoria até ficar exposta no departamento "utensílios de cozinha" para então um bobão que nem eu pegar e falar.
"Vermelho bonito esse, vai combinar com o resto."
E aí se frustrar no fio da madrugada e jogar tudo no lixo, fazê-la virar um inutensilio. Não.
É, esse sou eu. Uma contradição entre racionalizar demais e de menos. Chorar por conta de uma mulher, ou uma omelete carbonizada e ficar preso no silêncio mórbido de um carro.
Mulheres e frigideiras que me lêem, a frustração é única e exclusivamente minha, perdão.
Aliás, se você tiver uma receita boa de omelete mande aí nos comentários. Seguirei tentando.