QUAL É O NOME DO MENDIGO?

POR JOEL MARINHO

Sou interiorano, nasci em um lugar distante da capital mais de duzentos quilômetros. Cresci sem conhecer grandes cidades, para falar a verdade só fui raríssimas vezes em duas cidades médias quando criança com menos de dez anos. Aquilo era um mundo tão estranho, pessoas de todas as formas, pretas, brancas, indígenas, amarelas, bonitas, feias (se bem que bonito e feio é um termo muito relativo dependendo do olhar subjetivo de cada um). Enfim, meu mundo não era aquele!

Mas logo nas primeiras vezes que fui a cidade deparei-me com situações que fugiam do meu conhecimento, pessoas andando pelas ruas sem rumo e quase sem roupas, quando vestidas as roupas todas rasgadas, sujas, homens barbados, mulheres sem tomar banho já a muito tempo e aquilo passou a me incomodar. Quando eu perguntava quem eram aquelas pessoas a resposta era: são mendigos.

Mas o que seria um mendigo?

O tempo passou e finalmente na minha adolescência fui conhecer o mundo “mágico” da capital, na verdade não apenas conhecer, mas morar.

A cidade em pouco tempo me mostrou os “punhos fechados da vida real” de uma capital, onde tive que conviver em meio aos mendigos e por pouco eu quase me tornei um deles e acabei entendendo parte de suas dores.

Agora eu já sabia o que era um mendigo, mas ainda não sabia quem era esse mendigo, era apenas um mendigo como se ele não tivesse nome, na verdade para a maioria das pessoas ele continua sem nome.

Conheci um de nome Afonso, esquizofrênico que andava pela rua e pedia comida lá por casa, casa não, barraco. De quando em quando ele surtava e aparecia nu ou seminu, nos reuníamos e dávamos banho e comida para ele que sem tratamento ia sendo sucumbido até que em uma madrugada um caminhão acabou o atropelando tendo uma morte instantânea, senti muito, mas de certa forma era um alívio, não estaria mais naquele sofrimento solitário pelo mundo sendo muitas vezes maltratado por polícia e por pessoas maldosas que acabavam o batendo por pura maldade, visto que ele não atacava ninguém, nem nos momentos de surto.

Um dia o Afonso chegou em casa e estava muito lúcido, conversou bastante com a mamãe e relatou uma parte de sua história, de como ele tinha sido expulso de sua casa por ter aquelas condições. Década de 1980, quando ele provavelmente foi expulso de casa, conhecemos ele nos primeiros anos da década de 1990.

Não contou tanta coisa, mas foi o suficiente para eu descobrir algo: mendigo tem nome, tem história, tem memória, apesar de não ter endereço fixo. O difícil é ter alguém que pare para ouvir suas histórias e sobre como chegou àquelas condições de viver na rua, na mendicância.

A quem interessa a mendicância?

Essa é uma história longa que precisaríamos buscar muitas fontes, mas vem desde o período medieval e talvez até antes e tinha um significado muito forte à Igreja católica, sob o pretexto de "quem doa aos pobres doa a Deus”, então por muito tempo a mendicância era vista como uma forma de se redimir de alguns pecados ao se fazer doações de comida ou roupas aos necessitados, ou seja, acabou se tornando algo benéfico para os pecadores que viam nessas situação miserável de muitos a saída, ou melhor, a entrada no paraíso prometido pelo deus judaico-cristão.

Ah, o ser humano, o ser humano e suas mazelas por ele mesmo criadas.

Hoje a mendicância ainda é aproveitada pelas religiões no mesmo sentido que no passado, porém também muito utilizada em discursos de políticos oportunistas de quatro em quatro anos para culpar o governo anterior ou culpar os próprios mendigos por sua condição, muitas vezes sem jamais procurar de fato saber o porquê daquela situação, aliás, não sabem sequer o nome do mendigo.

Vejo que o tempo passou, lá se foram cerca de mais de quarenta anos e o mendigo continua sem nome. Sim, continua sem nome porque é como se ele realmente não existisse, a não ser quando por algum motivo ele rouba alguém ou está “enfeiando” uma parte da cidade, logo a polícia chega, baixa o cacete, expulsa ou mata e o mendigo migra para outro lugar onde vai continuar sem nome, sem endereço fixo, sem família e sem estado que o proteja. Apenas o mendigo sem nome servindo de conveniência para algumas igrejas e alguns politiqueiros de plantão que se aproveitam da miséria humana para se “livrar” do pecado e/ou ganhar dinheiro e voto da “sensibilidade” das pessoas que não tem esse olhar crítico e não percebe o golpe que aí está.