Companhia

Imaginei que seríamos eu e você. Desde criança, sempre fomos nós duas. Sabe-se lá se alguém poderia prever que você me acompanharia por todo este tempo, e mais. Já consigo aceitar que seu lugar é cativo. Que não vai me desapontar, nem deixar de ser inspiração e abrigo. Ontem senti a pele mais flácida e porosa. O corpo todo está em derrocada.

Você só melhora com o passar dos anos, amplia seu vocabulário, lapida cenários com lápis de cor e giz pastel. E nem é preciso tela ou papel. Na passarela do meu universo você desfila, cria suas histórias e alegorias conspiratórias, tragédias, versos, palavras novas, combinações que soam bem aos meus ouvidos. Repito. Quem não sabe que a palavra não existe, adota o silêncio e não me corrige.

Uma dupla impetuosa, somos nós. Água corrente e unicórnio feroz. Coabitamos em aparente pacificação. Se te desaponto, você me faz chorar. Se te dou um abraço, você me devolve um amasso e uma enxurrada de parágrafos desorganizados, preciosos.

Desde criança, você, melancolia, está sempre comigo. Inspira meus poemas, alimenta meus dilemas, tão presente e quase tangível. Todos os sentimentos são indispensáveis, a princípio. Um ser complexo é constituído pela loucura dos mais honestos, pela saudade dos que compreendem a finitude de tudo e de todos, pela magia dos sonhos sem pé nem cabeça, pelo ódio dos injustiçados, pela paixão dos desavisados, pelo amor dos comprometidos, pela libido dos abençoados. A tristeza dos insatisfeitos é palavra repetida todo dia nas mesmas frases e reclamações.

Mas você, melancolia, você é dos sensitivos. Está sempre comigo. Não te temo, não te julgo, não te afirmo como minha, não te desejo. Aceito-te, porém, como parte constituinte e indispensável sentimento da condição de ser neste mundo. Eu te carrego comigo no lugar mais profundo. Quando sai à rua, vai-te nua pelas esquinas do meu imaginário. Se traz pedras para nossa casa, alojo sua sucata no meu armário de ideias geniais. Você é astuta, e oculta seu cinismo até dos mais íntimos. Por isso somos tão pálidas, você e eu. O rubor que me dá saúde e que nos torna interessantes é tinta que desenha tramas profanas no meu subconsciente. Pareço uma mulher inocente.

Na primeira vez que você me visitou, senti a presença da desilusão que precede um coração ferido. Matei uma barata e me acomodei na poltrona de estofado encardido. E aí você chegou. Não te conhecia e nem imaginava que minhas palavras ditas em voz alta pudessem ser ouvidas por um sentimento personificado na barata morta. Conversamos, e a barata ressuscitou. Nada de novo. Nenhuma barata morre na primeira chinelada. Bati novamente. Morreu de verdade. Mas você ficou, melancolia. E gostou da minha companhia. E eu gostei de você. Meu segredo. Minha melhor parte. Minha fonte de desejos inalcançáveis, meu repositório de palavras transgressoras da norma culta. Minha vida adulta.