Pedala, Robinho!

Sábado à tarde. Mensagem no Whatsapp. Robinho. Foto de criança pequena. Foto da Unidade Básica de Saúde 24 horas. Foto de receita médica.

"Seu Ricardo, o João Pedro tá com infequissão na garganta. Tá com 39,8 de febre. Tô no dizispero. O senhor não pode me emprestar 250,00 pra comprar o remédio dele? Sexta-feira o seu Júlio Augusto me paga e eu devolvo pro senhor. Pode ser?"

Sabe aquelas paradas quando a gente quer acreditar que a pessoa vai realmente cumprir o combinado, mas sabe lá no fundo como vai acabar?

É sempre assim, a gente vai lá e faz, porque amolece o coração. Caramba, o menino tá com febre! E se fosse meu filho? E se fosse eu que não tivesse como comprar o antibiótico? Será que eu tô sendo testado? Vou deixar passar oportunidade de fazer o bem em dia de sábado?

Mensagem do App do banco. Confirmado Pix para Robertson dos Santos Silva, no valor de 250,00.

Segunda-feira.

- Robinho, seu nome é Robertson?

- Então, Seu Ricardo, todo mundo acha que é Robson, mas é que meu pai chamava Roberto e ele viu num filme que os gringo coloca os nome deles mesmo nos filho e junta o "son" no fim do nome pra falar que o filho é deles mesmo. Castelou?

- Sim, entendi sim! Robertson é o filho do Roberto!

- Sabe demais, seu Ricardo! Ah, queria agradecer o senhor, viu? O Jão tá bem melhor já! E pode ficar tranquilo, viu, que sexta eu pago o senhor. Palavra de homem!

O Seu Ricardo tava reformando a casa. Até tirou férias pra acompanhar bem de perto, pelo menos o primeiro mês. Empreitou a obra pro amigo, Júlio Augusto, que era engenheiro e tinha uma empresa de construções, que, por sua vez, fechou com o Robinho, pedreiro, pra executar a demolição do fundo da casa, fazer a tão sonhada varanda gourmet, com piscina e tudo, substituir os pisos e revestimentos, aumentar os vãos das janelas, quebrar a parede da sala pra integrar com a copa, estender a do corredor pros quartos terem mais privacidade...

- É suave, Seu Ricardo! O pai aqui é o Papa-Légua! Esse Robinho pedala mais que o do Santos! Eu sei que o seu Júlio Augusto fechou a entrega da obra em seis meses, mas eu garanto pro senhor que a gente deixa pronto em quatro. Pode botar uma fé! Palavra de homem!

Na quarta, o Robinho não deu a cara na obra. No dia anterior, antes de ir embora, deixou a camiseta amarela estendida na viga pra secar. O Seu Ricardo tinha marcado reunião com o Wesley, o arquiteto, na sexta, às 15:00. Vinte minutos antes, toca o telefone. Wesley.

- Ricardo, tudo beleza? Dei uma adiantada, já tô aqui na frente da sua casa, mas tá tudo trancado, parece que não tem ninguém...

Robinho deu perdido de novo. A camisa tava lá, fossilizando, no mesmo lugar em que tinha sido deixada três dias antes.

Alteração de pressão arterial, sensação de impotência, aumento de batimentos cardíacos, suor nas mãos, angústia progressiva que chega à falta de ar: sintomas característicos da síndrome de abandono por pedreiro.

Deu sinal de vida no sábado.

- Seu Ricardo, eu peço desculpa pro senhor! Não meti o lôco no senhor não, viu? É que o meu irmão sofreu um acidente de moto quarta-feira. Quebrou o fêmur. Ficou na maca, lá no corredor do hospital, porque não tinha quarto pra internar.

- Puxa vida, que chato, Robinho!

- Pior, Seu Ricardo! Precisei ficar lá com ele pra minha cunhada fazer os corre pra desenrolar a cirurgia. Tem aqueles lance de pino, aquele bagulho pra espetar no osso, que parece as armação de ferro que eu faço pras coluna das casa.

- Mas e aí, deu tudo certo?

- Graças a Deus, Seu Ricardo! Já operou, sim. Correu tudo bem. O embaçado é que vai ficar aí uns noventa dia sem poder colocar o pé no chão.

- Ah, mas o importante é que vai voltar a ter vida normal, né Robinho?

- Vai sim, se Deus quiser! Mas até lá, né Seu Ricardo...

- Qual é o problema, Robinho?

- Então, Seu Ricardo, é meio complicado pra falar disso com o senhor. Como é que vou dizer? Eu já não paguei o que o senhor me emprestou, teve aí os gasto com o meu irmão.

- Que é isso, Robinho! A gente entende...

- E agora vou ter que ajudar a minha cunhada e os meus três sobrinho. Meu irmão é entregador de lanche. Não tem registro em carteira, não paga INSS. Vai ficar esse tempo todo sem fazer um real.

Aí o Seu Ricardo já começou a ter aquele pressentimento de aí vem...

Bem do tipo quando a gente recebe um link que de cara já da a impressão de ser furada, mas a gente insiste, clica e descobre que acabou de ganhar uma cervejeira verde-limão com 30 maritacas dentro.

Só precisa enviar pra 20 contatos pra liberar o prêmio. Será que é vírus? Todo mundo sabe que é, mas todo mundo encaminha mesmo assim. E só cai na real quando aparece a mensagem que o celular foi invadido e precisa ser limpo imediatamente. E ainda passa vergonha por ter dado dor de cabeça pros parentes e pros amigos.

- Seu Ricardo, vou mentir pro senhor não! Tâmo sem mistura pra hoje. Eu, minha esposa, meus três meninos e agora minha cunhada e os três dela e do meu irmão aqui tudo junto. Será que o senhor não pode me emprestar uns 150,00 pra eu poder garantir a comida da semana? Prometo que na sexta eu acerto tudo com o senhor. Palavra de homem!

Mensagem do App do banco. Confirmado o Pix para Robertson dos Santos Silva, no valor de 150,00.

À noite o Robinho ligou de novo.

- Ô, Seu Ricardo! Desculpa tá incomodando o senhor essa hora, mas é que não tenho mais ninguém pra me socorrer. O senhor nem imagina o grau da vergonha que eu tô sentindo, mas é que a minha esposa tava aqui fazendo a janta e acabou o gás. Será que o senhor não me arruma uns 100,00? Pago tudo na sexta, sem falta. Palavra de homem!

Mensagem do App do banco. Confirmado o Pix para Robertson dos Santos Silva, no valor de 100,00.

Segunda feira.

Oh, glória! Robinho trabalhou o dia inteiro! Podia ter rendido mais, se não passasse tanto tempo agradecendo o Seu Ricardo, que até acabou indo embora mais cedo, pra ver se o rapaz dava uma acelerada no movimento.

Terça-feira.

Indignação logo cedo. Dessa vez não foi com o Robinho. Já tava trabalhando quando Seu Ricardo chegou. O desgosto foi com a caçamba. Cheia de tudo o que existe em uma obra: caco de cerâmica, lata de tinta, tábua de caixaria, vidro quebrado, vaso sanitário, tijolo esmigalhado, rebarba de gesso, embalagem de papelão, telha rachada, pedaço de concreto, calha entortada. E uma porta, que já não tinha mais como encaixar naquela montanha de entulho, encostada no muro.

- Lamentável, né Seu Ricardo! Fizeram a limpeza da obra e vieram jogar na caçamba do senhor...

- Como tem gente pilantra nesse mundo!

Aí apareceu o vizinho da frente. Contou que tinha acordado de madrugada com um barulho que parecia um terremoto, mas quando abriu a janela só conseguiu ver uma pampa cantando pneu. Infelizmente não deu pra anotar a placa.

O seu Ricardo não se conformava com o desaforo. Encanou que ia achar o infeliz a qualquer custo.

- Vou ajudar o senhor, Seu Ricardo! O senhor é um cara muito do bem, tá me ajudando pra pêga, não merece uma sacanagem dessa!

E todo dia, antes de ir embora, o Robinho dava um rolê pela vizinhança, pra dar uma geral, ver se tinha obras próximas, tentar identificar alguma coisa que pudesse associar com algum material da caçamba. E todo dia chegava com uma pista.

- Seu Ricardo, tão assentando um porcelanato na obra ali da rua de baixo que parece muito com esse piso aí da caçamba. É letal que é o cara!

- Seu Ricardo, acabaram de pintar uma casa ali perto da praça, na rua atrás da igreja, com a mesma cor que tá escrita aí nas lata de tinta. Bora lá dar um enquadro no folgado pra pagar o senhor?

- Essa já é, Seu Ricardo! Tem um sobrado, duas rua antes da escola, que tá sem porta. Puseram só uma lona pra fechar o buraco. E não tem caçamba na frente da obra. É caixa que é essa porta que jogaram aí...

E lá ia o Seu Ricardo verificar todas as informações fornecidas pelo Robinho. Quem sabe, né? Chegou até a pesquisar no Street View. De repente, o registro do sobrado com a porta ainda lá poderia servir de prova...

Mas era aí que tava o enrosco. Mesmo se tivesse certeza de que os entulhos tinham vindo de uma daquelas obras, seria muito difícil comprovar cabalmente.

- Tô desistindo, Robinho! Não vai dar em nada, mesmo. Tamo só perdendo tempo e alimentando sentimento ruim dentro da gente.

- Não, Seu Ricardo! Pra mim é questão de honra! Se o senhor quer arregar, de boa! Mas eu só descanso quando achar o vacilão! Duzentão a caçamba, pô!

- Deixa quieto, Robinho! Tava pensando aqui comigo e cheguei a uma conclusão: sabe o que tem que fazer pra um cara desses?

- O quê, Seu Ricardo?

- Rezar, meu querido! Mas rezar muito! Pedir a Deus que abençoe, ilumine, oriente e proteja. Pedir que conceda saúde e força pra trabalhar e ter prosperidade de grana e consciência evoluída pra nunca mais usar aquilo que é dos outros.

O rapaz deu até um pulo pra trás, arregalou os olhos, franziu a testa, espantou mesmo.

- Nossa, Seu Ricardo! Chega que arrepia isso aí que o senhor falou! Sabe que o senhor tem razão? Vamo deixar baixo essa fita aí. O senhor é bom demais. Tenho muita admiração pelo senhor, viu?

- Pô, Robinho! Valeu! Bora focar no que precisamos fazer pra adiantar o serviço então, né?

- Então, Seu Ricardo, é que meu aluguel, sabe, é 720,00, vence hoje, só tenho 420,00. Será que o senhor não pode completar os 300,00? E, na boa, Seu Ricardo, eu sei que o senhor é amigo do Seu Júlio Augusto, mas já faz três semana que ele não me paga nada. Vou mandar uma real pro senhor: só não dei linha dessa obra porque o senhor é muito gente fina!

Mas não tá dando mais pra segurar não, Seu Ricardo! Tô achando que ele tá me enrolando...

- Sério, Robinho?

- Aí então pensei: o senhor pode ver com ele, né, de abater o que ele deve pra mim dos pagamento que o senhor faz pra ele. Mas se o senhor resolver que quer receber de mim, eu vou pagar o senhor sim, viu? Palavra de homem!

E chega aquela hora que a gente fica esnucado! Se nega os 300,00 do aluguel, o maluco não aparece mais, aí tem que correr atrás de alguém pra tocar o serviço. Pelo menos duas semanas de obra parada. E receber de volta tudo o que já emprestou, pode esquecer!

Mensagem do App do banco. Confirmado o Pix para Robertson dos Santos Silva, no valor de 300,00.

Tarde de domingo.

Seu Ricardo sentou na varanda. O pôr do sol tava lindo. Um laranja que não se vê em paleta nenhuma, daqueles em que Deus chamou Van Gogh.

- Vai lá, Vincent! Pinta o fim do dia pra gente!

Momento de contemplação, não fosse a bendita da caçamba ali embaixo.

- Preciso pedir outra amanhã...

Foi então que acendeu uma luz, um cochicho de um anjo, um abalo na força, um insight: bora fuçar a caçamba! E o Seu Ricardo caiu pra dentro. Foi mexendo, cavando, garimpando. De repente, o achado: embalagem de isopor de um aparelho condicionador de ar, com etiqueta constando nome do comprador e endereço de entrega. Rua General Osório, 550.

- Opa, dá um pouco mais de um quilômetro daqui. E esse nome não é estranho...

Uma rápida pesquisa e a surpresa: o cara era Promotor de Justiça e o endereço, de um prédio de alto padrão.

- Mas rapaz, não tá fácil pra ninguém! O Ministério Público tá descartando entulho aqui na minha caçamba! Essa conta não fecha...

E foi então que mais uma vez a luz se fez, o universo conspirou, a Providência se efetivou.

- Júlio, tudo bem? Você tá com alguma obra no Residencial Espatódeas?

- Ricardo, acabei de entregar uma reforma lá. Um duplex, rapaz! Inclusive preciso até pedir desculpa pra você. Precisei tirar o Robinho dois dias da sua obra semana passada. Pra fazer a limpeza final lá. Ele tem uma Pampinha 84, faz carreto por fora, então pedi pra ele dar uma geral lá e tirar todo o entulho da obra do prédio, porque o síndico já tava ameaçando multar. E o cara é Promotor. Não pega bem, né?

- PQP! Só me fala mais uma coisa: você tá pagando o Robinho direitinho? Tem algum rabo?

- Que é isso, Ricardo? Tá tudo certo, sim! Tenho todos os recibos assinados por ele.

- É, então acho que você vai ter que dispensar o Robinho...

- Ué, por quê?

- Desovou todo o entulho da obra do Promotor aqui na minha caçamba, meu querido!

Na conversa com o Júlio Augusto, o Robinho não admitiu de jeito nenhum que tinha feito a arte. Mesmo com a apresentação da prova do crime, jurou por tudo que é mais sagrado que não tinha sido ele.

O Júlio Augusto acabou pagando a caçamba. O Seu Ricardo ficou no prejuízo dos empréstimos que nunca foram quitados. Palavra de homem teve bastante, faltou atitude!

Vida que segue. Bora zerar o que ficou pra trás pra poder olhar só pra frente. Novo pedreiro contratado, obra retomada. Agora vai!

- Bom dia! O senhor Ricardo Sestim, por gentileza?

- Pois não, sou eu mesmo!

- E o senhor Júlio Augusto Flores? Também se encontra?

- Sim. Está aqui, sim! Júlio, da um pulo aqui, por favor!

- Seu Ricardo e Seu Júlio, eu sou Oficial de Justiça, tenho aqui uma intimação pros senhores. É uma reclamação trabalhista ajuizada pelo senhor Robertson dos Santos Silva, reivindicando registro em carteira, recolhimento de FGTS, férias e décimo-terceiro salário proporcionais, cesta básica e vale-transporte, horas-extras e descanso semanal remunerado. Os senhores podem assinar o recebimento, por favor?

Que pedalada, hein Robinho!