Não me ensine a pescar, entregue-me o peixe
Numa sociedade futura, as pessoas não necessitarão sair de casa para votar. Basta acessar o smartphone. O eleitor geneticamente modificado para fins eleitorais aciona seu programa no aplicativo de voto e o sistema automaticamente reconhece seu sufrágio, garantindo mais segurança e direcionando sua preferência de acordo com o que expressa o algoritmo. Assim, algoritmando, a nova democracia evitará choques de ideias e discussões acaloradas, mesmo porque, conforme os cálculos do sistema, você sempre será reprovado no exame de consciência. O eleitor também esquivar-se-ia de eventuais embates de rua por discussões tolas sobre política. Quem briga com gambá, mesmo tendo razão, sempre sai catingoso.
Estamos prestes a testemunhar mais uma festa da democracia, escrutínio tendo de um lado a força cega e irracional do apedeutismo e no outro lado do ringue a pujança e valentia da jumentice. Nosso ignorante eleitor vira, de repente, um exponencial fator da lei da oferta e da procura, lembrando antigos embates eleitorais na minha aldeia, onde o cidadão deixava pra votar no último instante, no final da tarde, aproveitando para valorizar o passe e arrecadar o máximo durante o dia. Depois de votar, perdia a utilidade e o valor monetário. Durante a refrega da campanha, o combate dos meia dúzia de socialistas bem intencionados contra as máquinas super azeitadas dos profissionais da politicagem era comovente. Uma tese que corria no meio da mundiça bolchevique misturada com liberal: “não dê o peixe ao povo, ensine-o a pescar. Dê ao homem um peixe e ele se alimentará por um dia. Ensine um homem a pescar e ele se alimentará por toda a vida”, frase atribuída ao pescador que enricou comercializando sardinha, sendo que jamais viu uma sardinha fora da lata. Meu amigo Biu Penca Preta se recusava a instruir-se na arte de fisgar esses animais aquáticos, principalmente em época eleitoral. “Não me ensine a pescar, me entregue o peixe, se possível já devidamente tratado e cozido ao molho, com batatas fritas e arroz soltinho”, argumentava Biu Penca Preta, afiançando que isso estava entre seus direitos básicos de cidadão eleitor.
Outro princípio nesse mesmo assunto ensinava que não se deve dar o peixe, nem a vara e nem ensinar a pescar. Basta mostrar o caminho do rio ou do açude que o futuro pescador saberá cuidar de sua vida, roubando o peixe como gato profissional ou entrando para o ramo da pesca industrial em larga escala e enricando no comércio do pescado, após se mancomunar com servidores públicos, armadores de pesca, representantes sindicais e intermediários, por meio de corrupção, tráfico de influência e advocacia administrativa, arrumando concessão ilegal de permissões de pesca industrial, emitidas pelo Governo. Podendo expandir seus negócios para os rios da Amazônia, bagunçando o modo de vida dos ribeirinhos e ameaçando a biodiversidade. Na caça ao pirarucu, o pescador comercial da região acaba flechando a subsistência dos locais e matando o que resta de índio na área, sobrando ainda para pesquisadores e protecionistas desavisados. Barcos comerciais (chamados geleiros) arrastam suas redes rio acima e carregam tartarugas, tracajás e muita crueldade. Favorecidos pela nova ordem que acusa os índios e caboclos pela destruição dos biomas, a galera da pescaria predatória e da grilagem de terras vive tranquila. Fizeram as pazes com a violência.
Basicamente é o que está em jogo hoje, na eleição. O pescador predatório versus o peixinho arraia-miúda, não detentor da expertise da pescaria e absolutamente desconhecedor de que é o legítimo dono da vara, da rede, do rio, do barco, do mar e da bagaça toda.
Enquanto a tecnociência e a biotecnologia não conceberem o eleitor ideal, continuaremos sendo subprodutos da indústria da eleição. Eu mesmo sofri assédio eleitoral. Madame Preciosa me ofereceu favores sexuais em troca de voto. Essa mística figura garante me enviar, por telepatia, a cola na hora do voto. Nova modalidade de prática de fraude eleitoral esotérica. Ao fim e ao cabo, como diria o pedante, eleições sempre acabam sendo angústias revigorantes. A gente continua acreditando na força da torcida organizada para mudar o placar em nosso favor. Mesmo com tantos gols contra ao longo de nossa excêntrica história.