ANTÍTESE DE MIM

E se eu hoje decidisse ser diferente do que hoje sou, só para me contrariar? Aí seria como os outros, assim como esses outros desejam que eu me comporte e seja. Vou deixar de ler os livros que leio, e me inscrever em grupos de WhatsApp e ali mandar todo dia “bom-dia”, escrever frases fáceis copiadas dos textos de autoajuda e responder com ideogramas que popularmente chamaram de emoji. Vou receitar fórmulas de felicidade, com pílulas que falam de amor sublimado, em lindos retratos coloridos que irão disfarçar minha falta de criatividade e profundidade.

E sendo divergente de quem sou, vou também encher meu celular de selfs que mais adiante vou esquecer que os tenho ou serão simplesmente apagados ou deletados. Aliás, deve ser melhor fotografar os instantes da vida que senti-los no exato instante em que se sente e gravá-los no interior subjetivo da alma.

Vou desempregar meus brincos, jogar fora as pulseiras, desfazer-me dos óculos vermelhos e esconder os verdes e os alaranjados. Vou comprar calças de corte reto, com caimentos na altura certa, e abotoar as camisas longas de cores discretas e de estética em poucos detalhes. Vou me desfazer da camiseta com a estampa da Janis Joplin e das camisas floridas, das listradas e das quadranguladas. Só vou me roupar com o que estiver na moda e conversar apenas com quem comigo pensa igual para acreditar que estou sempre certo. Vai que descubro que posso estar pensando errado? Melhor nem arriscar.

Melhor ler o que todo mundo lê e repetir o que já se é falado. Vou me achar inteligente e bem informado. Por que continuar andando no lado contrário da calçada se vou poder seguir o Forrest Gump do momento e achar que o divergente é sempre o equivocado, ignorante e alienado? É melhor ser o um homem unidimencional que um tal de Marcuse (que não vou nem saber quem é) um dia lá atrás falou, e deixar minha vida simbólica ser, então, colonizada e subjugada.

Vou deixar de ler Mayakosky, Ferreira Gullar, Solano Trindade, Torquato Neto e Drummond de Andrade. Deixar de ouvir Caetano e Chico Buarque. Conhecer Clarice Lispector e não entender nada. Desconhecer Max Weber, Adorno, Erich Fromm e Habermas, e achar que Hobsbaww deve ser palavrão em Aramaico, Javanês ou Alemão.

Vou entrar em uma bolha que não é a de sabão, e me deixar ser levado que nem em boiada para o céu do alto mar que fica um pouco depois do Afeganistão.

E se eu hoje fosse diferente de quem eu hoje sou, iria correndo ao banheiro atravessar o espelho e me tornar o oposto de mim que se tornou o inverso de quem realmente sou

"Quanto mais diferente de mim alguém é,

mais real me parece, porque menos

depende

da minha subjectividade"

(Fernando Pessoa)

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 20/10/2022
Reeditado em 21/10/2022
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