A INCERTEZA CERTA

Certo dia, como incertos são os dias, alguém saiu de casa e bateu com o carro. Outro sentiu dores abdominais repentinas e ao final da tarde estava sendo do apêndice operado. Teve ainda aquele outro que escorregou ao descer a escada e quebrou um braço. Uns chamam de azar, destino, urucubaca ou carma. Porém, quem foi que disse que os dias, as horas e os minutos são ou têm que ser iguais? Quem inventou o dia não o fez para ser gêmeo, idêntico, constante, regular e estável.

A vida não é certa ou incerta. A vida apenas é. Sob o prisma humano podemos dizer que a vida é incerta. Mas não é porque ela seja em si irregular ou duvidosa. Somos nós que necessitamos da sensação de segurança e certeza. A vida, a vida mesma, é precária, contingente, indefinida e não necessariamente regulada. A vida é feita de casos e acasos, acidental, eventual e aleatória. Por isso precisamos de hábitos e rotinas que nos permitam sentir-nos frequentes e constantes. Todavia, não nos iludamos: nada é absolutamente seguro, repetível e previsível.

Os gregos nos legaram o termo “Psykhé” de onde se deriva a ideia da alma, mente humana. “Psykhé”, por sua vez, provém do verbo “Psykhein”, que significa respirar, soprar. Neste sentido etimológico alma humana representa “sopro vital”, isto é, vida. Sim, a vida é para cada indivíduo um sopro.

Quanto mais acreditamos que tudo está certo e presumível, aí vem a vida e nos mostra a sua verdadeira face. Surge ou acontece algo que nos pega desprevenidos e, então, o mundo seguro desaparece como em um passe de mágica. Contudo, não é mágica. Mágica, ou mais precisamente ilusão, é acreditar que temos domínio sobre as coisas da vida. Ou como disse a educadora e escritora norte-americana Helen Keller (1880 – 1960), “a segurança é sobretudo uma superstição”. E para quem não sabe, Helen Keller foi a primeira surda-muda-cega da história a se formar em bacharelado. Parte de sua história é mundialmente conhecida em seu livro The Story of my Life, que gerou o filme O Milagre de Anne Sullivan (1962).

Se uma coisa na vida é certa é que ela é incerta. Observe a sua, caro leitor(a), e veja como ela é cheia de quase e se, de por pouco e por um triz. Não se assuste, afinal já dizia o filósofo prussiano Immanuel Kant (1724 – 1804), "avalia-se a inteligência de um indivíduo pela quantidade de incertezas que ele é capaz de suportar".

A incerteza, propriamente dita, não é sinônimo de sempre coisa errada ou má. Vide, por exemplo, a descoberta da Penicilina, ou quando nos esbarramos acidentalmente em alguém e depois esse alguém se transforma no amor da nossa vida. É muito improvável que encontre no chão de uma rua um bilhete premiado da loteria, mas ainda assim é possível.

Mas não há por que temer à vida. Tomar certos cuidados, sim. Mesmo assim, por mais que nos protejamos dentro das rotinas cotidianas, a vida é sempre incerta, é certo. É verdade que há tempos mais incertos que outros, todavia todo o tempo, o tempo todo, estamos expostos às imprecisões e oscilações do existir. Não se pode controlar plenamente às externalidades e intempéries da natureza. E quando mais entendermos isso, melhor nos será para lidar com os acontecimentos e eventos que nos fogem ao nosso controle. Como bem nos alertou o filósofo alemão Friedrich Nietzche (1844 – 1900), “A consciência é uma garrafa vazia num oceano de afetos em maremoto”.

Aceitar que a vida é incerta não significa nos resignar, abaixar a cabeça e se deixar sofrer. Pelo contrário. Entender que viver tem sua cota inevitável de sofrimento, visto não podermos realizar todos nossos desejos, prepara-nos melhor para lidar com as frustrações e as adversidades da vida. É não se deixar devastar com as experiências emocionalmente desconformes, bem como admitir nossa pequenez e fragilidade frente à natureza, ao mundo e à realidade.

Contratempos fazem parte de se estar vivo e nem tudo é culpa de alguma divindade vingadora ou da má-sorte propriamente dita. Os romanos da Antiguidade tinham em sua mitologia a figura da Fortuna, deusa do acaso, do destino e da sorte (seja ele boa ou não). Sua representação simbólica era uma mulher cega que distribuía seus desígnios aleatória e fortuitamente. No tarot, por sua vez, isso é retratado com a carta denominada de Roda Fortuna.

Talvez por tudo isso acima, é que diariamente ao acordar me repito os últimos versos de um poema de Carlos Pena Filho (A Solidão e sua Porta) que nos lembra que sempre vivos temos a vida com tudo que é insolvente e provisório, e que devemos entrar no acaso e amar o transitório

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 17/10/2022
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