Professora Manoelina

Português era o métier da professora Manoelina ou Manon, como preferia ser chamada. Era das mestras clássicas, experiente, segura de si, assertiva e implacável com nosso idioma. Era sutil e doce quando funcionava no modo ironia, e direta e certeira, quando funcionava no modo atalho. Ela não se preocupava em agradar aos outros em detrimento de fazer concessões a tropeços linguísticos. Professora Manoelina estava a serviço da amada língua portuguesa.

Manon era temida pelos colegas que costumavam esculhambar o vernáculo em reuniões de departamento, em festividades escolares ou em apresentações de seminários. Não poupava seus estudantes, mas era mais exigente com os que portavam o título de professor. A correção era ato contínuo, mas seus conselhos eram justos: na dúvida, dizia, simplifique e deixe-se guiar pela certeza do que conhece. Pesquise e pergunte mais para errar menos. Todo professor, independentemente do conteúdo que leciona, deve ser um conhecedor da nossa língua, tanto falada quanto escrita.

Dona Manon sabia que a maioria dos alfabetizados ignorava regência pronominal. Então, ao ouvir um “como foi minha inspeção que eu passei...” ela pigarreava, as luzes vermelhas piscavam, as sirenes gritavam. E a correção era imediata: “como foi a inspeção pela qual meu carro passou?” ou “como foi a inspeção do meu carro?” E sua recomendação era pelo simples: “tudo em ordem com meu carro?” Linguagem empolada é de uso exclusivo dos entendidos...

Outra formulação que incomodava Dona Manon era o emprego errado da voz de certos verbos: voz ativa ou voz passiva, um erro comum para a maioria dos alfabetizados.

- “Acho que vou reprovar”.

- Quem você reprovará?

- “Eu mesmo. Eu vou reprovar”.

- Errado! Diga: acho que serei reprovado. É caso de emprego da voz passiva. Ou, se for professor: “acho que terei de reprovar o João”. Aqui, a voz é ativa.

Havia outras preciosidades na coletânea de erros recorrentes do acervo de Dona Manon:

- Meu marido vai operar amanhã.

- Não sabia que seu marido é cirurgião.

- Ele é bancário e vai operar amanhã bem cedo.

- Errado! Diga: meu marido vai ser operado amanhã. É caso para a voz passiva.

- Entendi. Ele não pode operar porque não é médico. É que eu se confundo com essas regras.

- Errado! Diga: eu me confundo com as regras. Ele se confunde. Nós nos confundimos...

Embora a norma culta aceite a dupla negativa, Dona Manon não a empregava, mas não a corrigia. No espanhol e no francês a dupla negativa é comum e aceita; já no alemão e no inglês não é aceita. É o caso de “eu não estou vendo nada”, em que há duas negações, não e nada.

Nesses casos, Dona Manon substituiria “lá não tem mais ninguém na recepção” por “ninguém está na recepção”. Um “não encontrei ninguém chamado Rubens” seria substituído por “não encontrei alguém de nome Rubens”. E ainda em “não fiz nada para você me tratar assim” Manon diria “não fiz coisa alguma para você me tratar assim”. Para ela, era uma questão de lógica e que deveria reinar acima das regras gramaticais. Como na matemática, negar duas vezes é afirmar!

Uma implicância adicional de Dona Manon era com o uso do “tem”: “tem alguém aí?” ou “tem só meia dúzia de alunos na sala”.

Ela esperava a formulação “há alguém aí?” e “há só meia dúzia de alunos na sala”. Professores que empregassem as formulações equivocadas viam-nas serem fulminadas no local...

O problema é que essas formulações estão impregnadas no falar das pessoas que até os mais puristas às vezes se pegavam no deslize. Manon mesmo confessava, sem se envergonhar, que ela própria cometia esse erro ocasionalmente.

Outro caso parecido ao dos erros firmemente incorporados no linguajar cotidiano está aqui:

- Onde você vai?

- Eu vou no banco.

- Errado! Diga “aonde você vai?” e “eu vou ao banco”. Depois, diga “eu agora estou no banco”.

Um capítulo especial merecia o uso do cujo/cuja. Dona Manoelina ficava arrepiada quando ouvia ou lia um “é aquele aluno cujo o livro encontrou”. Em apenas sete palavras, dois erros crassos!

E punha-se a explicar de modo bem simples: cujo e cuja são palavras solitárias; não aparecem com “o” nem com “a”. É apenas cujo ou cuja. Então fica “é aquele aluno cujo livro...”, ou “é aquele aluno cuja bolsa...”

Agora vem a parte II: o livro encontrou quem? Errado! Diga “o livro foi encontrado...”. É caso de voz passiva. Assim, a frase fica “é aquele aluno cujo livro – ou cuja bolsa – foi encontrado(a).”

O bizarro nisso tudo é que a professora Manoelina se recusava a comentar os textos de mensagens enviadas via WhatsApp, por exemplo. As abreviações, os erros, as ambiguidades eram assustadores. E revelavam um padrão consistente de analfabetismo funcional.

Houve época em que ela se recusava a responder a mensagens contendo erros, mas deu-se por convencida que, a continuar agindo assim, mensagem alguma seria respondida. E relacionamentos importantes poderiam ser afetados ou mesmo perdidos. Seu zelo pelo vernáculo havia vislumbrado um limite entre o pode, mas não deve; a regra e o sentimento.

Professora Manoelina era respeitada por alunos e ex-alunos. Mais do que respeitada, era admirada. Mais do que admirada, era amada.

Sabia o teor de alguns comentários que circulavam sobre seus ensinamentos. No silêncio do seu coração, adorava saber que alguém se referiu a ela com um “aprendi isso com a chata da Manon e nunca mais esqueci”. Ou com um “tudo o que sei de português devo à insuportável da Manon”.

Eram demonstrações de uma grande prova de amor!

Dona Manon já era um desses seres seriamente ameaçados de extinção...

René Henrique Götz Licht
Enviado por René Henrique Götz Licht em 15/10/2022
Código do texto: T7628279
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.