TEMPOS INFINITOS
Tudo aconteceu no tempo de um relâmpago, grito. tiro, gozo. Ela entrou na minha vida por uma porta que até então pouco me dava conta. Estava vestida de modo despojado, sem adereços ou aromas que pudessem seduzir ou confundir de alguma forma. Cabelos soltos, lindamente desalinhados. Curvas bem torneadas, estonteantes diria. Olhou para mim como olhamos algum quitute raro, como avistamos o longe sem pressa nem precisão. Tinha passos austeros, sabia bem por onde prosseguir. Aquela pele doce inspirava poesias, chamava por um afago, mas resisti à tentação. Uma boca como poucas vira antes, dentes da mais fina e perfeita porcelana. As mãos chamavam a atenção. Pareciam pertencer a quem ficava arando chãos de sol a sol. Algumas cicatrizes delineavam o tanto que já padeceram, davam certo fiapo de pena. Sua alma se engraçou com a minha numa dança audaz, ambas decidiram embaralhar suas matizes de forma que perdessem sua raiz, seu gosto original. Estava assustado diante daquele frenesi, num ímpeto até ameacei chorar, quiçá fugir. Mas as ciladas em que o destino nos acua trazem os mandos dos céus. Elas são cravejadas de rebarbas, com asperezas que dopam os planos originais, deixando-os à sua mercê. Rasguei suas roupas pouco me importando estarmos em plena Praça da Sé num daqueles horários em que o mundo todo vai e vem. Ela pouco resistiu. As pessoas nos viam naquela cena atroz e seguiam seus rumos, impávidas. Fui em frente naquele ímpeto de deixá-la do mesmo jeito que veio ao mundo, desnudando cada poro, cada canto, cada atalho. Nunca tinha experimentado tal paladar antes. Confesso que estava me sentindo como prisioneiro liberto do Campo de Concentração. Ela soltava grunhidos que pareciam espasmos extasiados, que foram pouco a pouco minguando, esfacelando. Foi quando ele apareceu. Num relance esquisito, sacudiu nossos corpos com tal violência que nos tonteou. Não se preocupou do tanto que estava nos esmurrando. Não levou em conta que dissipava o que tínhamos de mais lindo como se espalha o pó do chão. Simplesmente arrebatou nossas vidas numa rede de aço e as jogou no fosso dos desvalidos, como dois trastes imprestáveis e absurdamente desprezíveis. Tudo levou frações de segundos, nem deu tempo para o nosso eco voltar ao fado inicial. Quando nos demos conta, lá estávamos atirados naquela masmorra fétida, infestada de ratos, baratas e desdéns. Ouvimos o estrondo da pesada tranca da porta sendo fechada e depois disso nada mais, além do som dos nossos ares entrando e saindo dos pulmões. Cada um ficou prostrado num canto por horas, quem sabe por séculos. Esqueceram de vez de nos trazer algo para beber, comer ou acarinhar. Nossos corpos foram se definhando, correndo em direção à morte numa desenfreada debandada. Foi quando ouvimos alguém mexendo na tranca. Estávamos já quase desfalecidos, quase desistindo de vez, mas a voz daquela tranca sendo mexida foi um sopro de vida naqueles quase cadáveres. Foi uma espécie de deixa para desempredar o nosso sangue, deixando-o atiçado como jamais se fez. Então fizemos a única coisa que a nós cabia: começamos a nos amar como duas gazelas no cio, embrenhando uma louca dança regada ao mais viril torpor. Ficamos assim trocando fluídos e misturando suores por tempos infinitos. Nossas línguas se abraçavam numa acirrada desenvoltura, na mais linda ciranda que alguém já ancorou. O gozo derradeiro nos levou aos quintais de Deus, que a nós sorria, a nós abençoava, a nós invejava. E assim descerramos o nosso fim, reluzindo uma felicidade que ninguém no universo jamais chegou, e jamais chegará, nem perto.