Geração 70: os pais e o movimento de contestação de padrões e busca de liberdade

Principalmente ela, mãe, tentava com afinco “educar”. Entre aspas, porque isso significava naqueles tempos ter todos os cuidados ao pleno desenvolvimento da personalidade dos filhos, dentro da lógica da tradicional família cristã. Não que ela não fosse honestíssima, defensora da justiça social, e de fato, exemplar na missão dela.

As refeições juntos, em família, almoços e jantares, eram uma constante pelo menos até a nossa pré-adolescência. Nesses ricos momentos, muitas conversas, o imenso prazer gustativo do cardápio ítalo-brasileiro caprichado pela mamãe, e, a oportunidade de reforçar os laços e eventualmente receber as tais mensagens educativas dos pais.

Como éramos meninas em idades de dois anos de diferença uma da outra, não era raro que os episódios educativos privilegiassem as questões morais e o comportamento feminino que fosse adequado aos bons costumes.

História 1. Joelhos à vista

Certa feita minha mãe incomodou-se muito com nossos vestidos recém-chegados da costureira. Eram minivestidos que assim como as minissaias tinham bainhas a 20 centímetros acima dos joelhos, moda de origem na década de 60. Sem mais argumentos foi à sala e nervosamente convocou o papai para conversar com as meninas e dar um jeito naquela situação. Serenamente, ele nos mandou sentar no sofá, e indicou que cruzássemos as pernas e em seguida as descruzássemos voltando à posição inicial. Foi tragicômico, e entre risadas e certa aflição pelo resultado ouvimos a sentença. Com as mãos cobrindo os olhos meio teatralmente ele declarou nosso insucesso em minimamente saber se sentar e concluiu que seria impossível o uso de tais vestimentas. Satisfeitíssima pelo apoio, minha mãe arquitetava uma solução já que a bainha disponível era insuficiente para viabilizar o conserto das peças. Fiquei arrasada, estava tão feliz com o vestido novo. Naquele clima de decisão que feria a alegria das filhas, veio o papai e ofereceu uma conclusão incrível: “faça shorts do mesmo tecido e elas poderão usar sob os vestidos”. Os shorts chegaram e eu pelo menos usei somente umas duas vezes. Logo à frente no tempo, a minissaia, que foi em sua criação um ato de libertação e rebeldia contra uma geração conservadora, tornou-se tolerada também em nosso lar. A maneira como trataram a questão, em especial meu pai com uma intervenção amorosa fortaleceu em mim o direito de compartilhar os costumes de minha geração. Por outro lado me fez refletir como ficou mais fácil para mamãe dividir isso com o marido, e, permitiu experimentarmos que meninas unidas podem vencer padrões que não desejam para si. A adoção de minissaias estava unida ao início das lutas feministas e ao movimento hippie. Estas e as meias calças coloridas e malhas caneladas, da estilista Mary Quant inovaram e espalharam a moda feminina.

História 2. Caso sério

Durante um almoço mamãe resolveu nos dar um exemplo da importância de sermos mulheres entre outras coisas, recatadas, comportadas, e com aptidão para gerar (zelar/rezar) uma família. Para tanto, passou a relatar um namoro que papai teve antes da história deles dois. Tratava-se de uma moça que num tempo remoto visitou os tios que viviam no Distrito da cidade que papai habitava. Com uma nota de ciúme, mamãe começou a expor coisas do casal, tais como, encontros perto do rio, o cavalgar juntos e livres, e sentenciou: “até beijo ocorreu”. E continuou para dar o tiro final: “e com quem ele se casou? Co-mi-go!”. Burburinhos e interrogações se voltaram para papai. Ele interrompe a refeição por um momento e compelido a contribuir para a veracidade dessa história, afinal dele, respondeu: - “Não, não foi isso! De fato nos conhecemos, nos gostamos, namoramos, mas quando a temporada dela chegou ao final e ela retornou para Campinas não tínhamos mais como nos ver, trocamos algumas cartas, e logo em seguida sai para estudar em outra cidade.” Explodimos! Foi uma festa, vencia o profano, e rindo muito gritávamos o nome da “rival” de mamãe junto ao nome do papai tentando provocá-la! Mas, ela se manteve irredutível: “mas casou-se co-mi-go”. De fato, papai a admirava muito e em vários sentidos. Elogiava-a sem economizar, e mesmo com suas muitas diferenças estiveram juntos até o fim. É certo que a escolheu porque a amava e ponto. A franqueza de papai ao esclarecer para as filhas os verdadeiros sentimentos que teve, não caindo na armadilha do moralismo, da hipocrisia, do oportunismo, foi admirável. Com muita coragem repeliu o comportamento que elege a moral como valor em detrimento de todos os outros, tão importantes. Uma aula e tanto que influenciou a serenidade de muitas decisões fundamentais de vida.

História 3: Mulher pode ter a profissão que quiser

Minha prova vestibular do Cescem*, que era naqueles tempos um “tudo ou nada”, pois consistia de um punhado de testes a serem resolvidos em algumas horas, ocorreu em 1974-75. Para disputar as pouquíssimas faculdades existentes na época costumávamos frequentar quando possível, o “cursinho”. Embora valorizasse a oportunidade, era ruim frequenta-lo, pois, nos sentíamos mal pela gigantesca concorrência, nos impressionávamos por ter em cada colega a sensação de um inimigo, e nos cabia sobreviver às aulas preparadas para decorarmos conteúdos e para acertar testes e suas pegadinhas. Caso selecionada-o e não residente nas cidades com faculdades, tínhamos que arcar com moradia (repúblicas, pensões, casas de família) e tudo o mais para sobreviver. Num intervalo de aula do cursinho, alguns estudantes formaram uma roda para conversar, o que era raro, nunca havia tempo, e então, eis que nos chega o professor do dia que era um estudante de medicina, e nos pergunta sobre nossas opções. A maioria respondeu o de sempre, medicina, engenharia, Direito, e eu, as Ciências Biológicas. Simplesmente ele engendrou um discurso de que era uma profissão sem futuro, e em vista de minha reação, ele passou a me consolar de que eu até poderia entrar nesse Curso porque me casaria e alguém me sustentaria. Meu dia acabou, fiquei frustrada e muito triste. Precisava trabalhar! Como atrelar ao afetivo uma condição financeira? Mulheres que estudaram como minha mãe e algumas tias eram exemplos tão próximos! Minha opção foi definida desde o Ensino Médio, e se deveu a um professor autodidata em Biologia, maravilhoso, da escola pública que com suas descrições de paisagens florestais, de lagos e suas tantas cadeias alimentares, as narrativas de comportamentos das espécies, me encantou e inspirou logo no ginásio a opção que perdurou.

Em casa, contei o ocorrido ao papai e ele afirmou que eu deveria escolher minha profissão, pois, somente assim me realizaria plenamente. Acrescentou que caso eu não tivesse pretensões salariais altíssimas, eu poderia viver com dignidade. Arrematou que casamento não cabia nessa discussão. Eu tinha 17 anos! A sensação ruim foi passando com os dias, e levei meus planos adiante. Meses depois tomei coragem e perguntei a outro professor do cursinho, um estudante de Agronomia, que disse que era um curso belíssimo. Fiquei aliviada.

O que decorreu durante a graduação de Biologia nesse sentido:

No terceiro ano de faculdade fui convidada para substituir professores de Ensino Médio por cinco meses em duas escolas particulares com carteira assinada e tudo! Neste mesmo ano fiz um trabalho específico de organização de coleções animais vindas de vários museus para um professor e ganhei uma inusitada e “ótima grana”! O meu terceiro ano de graduação foi meu primeiro ano de exercício profissional e no quarto ano, após a formatura e para todo o sempre, me sustentei, confirmando o que aprendi em casa.

História 4: Kriptonita

Nas raras oportunidades de sair à noite durante minha graduação, observei diferença nas bebidas de meninas e meninos. Para elas vinha um drink de aparência linda, num copo long drink, com gelo, e a bebida era de cor verde grama. Perguntei de que se tratava, era licor de menta. Somente para os meninos, cervejas. Pedi um drink para mim e no terceiro gole, meu estômago e depois, meu fígado, reclamaram muitíssimo. Em casa, no fim de semana, contei ao meu pai, que explicou que o teor alcoólico devia ser trinta vezes maior que o de uma cerveja e me aconselhou a nunca mais beber aquilo. À minha manifestação de que queria poder beber algo, ele planejou uma boa e simples saída. Numa oportunidade seguinte, estávamos numa lanchonete, ao pedir minha bebida, expliquei discretamente para o garçom as instruções de meu pai. Este me trouxe uma latinha de cerveja totalmente envolvida num grande guardanapo de papel. Ao entrega-la, ele sorriu para mim e disse “seu guaraná”. Assim hidratada, sem a kriptonita a agredir meus órgãos, me senti muito melhor e revelei minha estratégia toda vez que alguma menina se interessou. Senti-me esperta e protegida, e segura. Não demorou muito que essa discriminação acabasse, e eu pude parar de esconder minha latinha. Desde que mulheres têm relação histórica inclusive com a produção de cerveja, pode ser que eu tenha enfrentado um caso local e temporal sobre tal restrição. Ainda bem que tive um ótimo aconselhamento, que me ajudou a fugir de padrões que não me serviam. A década de 70 para as mulheres ainda tinham percalços.

A partir da perfeição da frase sobre família de Liev Tostoi, comento que sabemos dos problemas que vivemos, porém, minha decisão é privilegiar aqui os relatos vivos e amorosos em especial de meu pai. Os olhares de bondade, as intervenções sinceras, o bom gosto, a permissão para amar, a felicidade de viver em simplicidade, a ausência completa de arrogância, a alegria genuína. Assim ele foi. Muito privilegio tê-lo meu pai. Toda homenagem será pouca.

*http://memoria.bn.br/pdf/221961/per221961_1972_14148.pdf. Reportagem dos vestibulares da época e explicitação dos exames, a saber, o Cescem (Centro de Seleção de Candidatos às Escolas Médicas), para as Humanas o Cescea, e a Mapofei, para exatas, Faculdade de Engenharia Industrial de São Bernardo do Campo, Politécnica da USP e Faculdade Mauá.