"MUIÉ" DESCONHECIDA

Mestre Zé era um amigo, assim chamado carinhosamente. Pessoa de excelente coração que somente fazia mal a ele mesmo. Costumava tomar umas e outras e quando começava era um deus nos acuda; não parava mais, ou só parava quando totalmente embriagado e era levado para casa pelos colegas de infortúnio ou por alguém da família que ia buscá-lo nas bodegas do bairro.

Estimado por todos do bairro, onde vivia de um pequeno frigorífico, e mesmo com uma vida bastante difícil era desprendido de bens materiais; sempre disposto a ajudar os mais necessitados, mesmo com um ganho pequeno, pois no máximo vendia duas bandas de boi por semana; primeiro porque não tinha poder aquisitivo para comprar mais, o apurado era todo para pagar aos marchantes os pedidos da semana e parte de outros pedidos antigos, acumulados devido a prejuízos com os trambiqueiros, às poucas vendas e ao pequeno lucro, enfim o dinheiro era somente para se mexer: pagar as necessidades básicas da casa, água e luz, nem telefone naquele tempo tinha, até porque isso era coisa para rico, dar comida e vestir a prole que era enorme.

O movimento era de domingo a domingo de sete da manhã as cinco da tarde de segunda a sábado e até o meio-dia de domingo. Corriqueiramente, um conterrâneo aposentado ia para o frigorífico passar o tempo papeando com mestre Zé. Mestre Zé baixo, tinha um metro e meio mais ou menos, enquanto seu fiel escudeiro, vamos assim chamar o conterrâneo, tinha perto de um metro e nove. Forte, voz de barítono, eram unha e carne. Enquanto o mestre gostava de tomar suas cachaças, o conterrâneo era averso a álcool.

Um certo domingo eu estava lá no frigorífico, por volta das dez horas da manhã, conversando e observando as pessoas que vinham da missa ou da feira do bairro. Uma mulher ia passando do outro lado da rua, como se fosse passar direto e não demonstrava qualquer interesse em comprar nada no frigorífico. De repente, ela muda de rumo e de ideia também e vem para o lado do frigorífico, entra e pede um quilo de carne sem osso.

Naquele tempo, a carne não tinha estes cortes de atuais: filé, picanha, chã de dentro, chã de fora, patinho alcatra, contrafilé, era simplesmente com osso ou sem osso e havia pouca variação no preço, ou seja, um preço para carne sem osso e outro para carne com osso e o filé. A carne moída geralmente eram as sobras que juntas com gordura se passava na máquina e era vendida por um preço totalmente irrisório.

Pois bem, mas voltando à mulher. Ela entrou e pediu seu pedaço de carne no que foi prontamente atendida pelo mestre Zé; entregue o pedido, ela olha para ele e diz, seu Zé, na próxima semana eu pago, hoje estou sem dinheiro. Tudo bem pode deixar, respondeu ele.

Ela saiu, ele voltou para onde estávamos e continuou a conversar. Eu tinha observado todo o ocorrido, e quando ele voltou e começou a conversar, perguntei: mas o senhor não vai anotar o que ela comprou para cobrar depois? Não, eu a conheço, respondeu-me.

Tudo bem que o senhor a conhece, até porque acho que se não a conhece não teria vendido fiado, mas ocorre que o senhor vende fiado a várias pessoas e não é possível saber de cor o nome e o valor de todas as vendas fiadas e quem está lhe devendo, por isso deveria anotar tudo que vende fiado e depois quando recebesse, dar baixa no pagamento.

Resignado, pegou uma caderneta, e com uma letra que somente ele entendia, e anotou: "muiê desconhecida um quilo de carne."

HENRIQUE CÉSAR PINHEIRO

FORTALEZA, SETEMBRO/2022