SUTIÂS E VÉUS
DA QUEIMA DE SUTIÃS À QUEIMA DOS VÉUS
[Para Verônica Marzullo de Brito,
para todas as mulheres de minha família
e de todo o mundo]
Nelson Marzullo Tangerini
A professora, escritora, feminista e anarquista Maria Lacerda de Moura escreveu, certa vez, que “calar-se hoje é ser cúmplice”. E prosseguiu: “Pratiquemos o crime inominável da coragem, no meio da covardia e do cinismo da hora presente”.
Quero escrever sobre Mahsa Amini, iraniana de origem curda, covardemente assassinada pela polícia de costumes do Irã, país onde as mulheres são tratadas como um ser de 5ª categoria e os gays são condenados à morte por enforcamento.
O Curdistão é um país localizado entre a Turquia, o Iraque, o Irã e a Síria. Neste país sonhado pelos curdos, as mulheres lutam bravamente contra o Estado Islâmico, o ISIS, um bando de fanáticos conservadores. Quem conhece a brava luta das guerrilheiras curdas pode imaginar o que sentem dentro de um país que não é o delas, porque o Curdistão (Rojava), sonhado e desenhado em suas mentes, ultrapassa todos esses limites – inclusive, o do autoritarismo religioso do islã.
Quando fui membro da Anistia Internacional, fiquei sabendo, através de um boletim, que as mulheres iranianas, que tentavam lutar pelos seus direitos, acabavam sendo presas e que, consequentemente, eram violadas dentro das celas, o que nos mostra que o fundamentalismo religioso está muito próximo da violência sexual. Talvez porque os homens conservadores, defensores da pátria e da família, não suportem conviver com mulheres mais inteligentes ou porque estas, conscientes de sua luta e de sua existência, se negaram, um dia, a servir-lhes: sexualmente ou como empregadas domésticas.
Tenho ouvido, no Brasil, inúmeros absurdos sobre a revolta das mulheres no Irã. Dizem os fundamentalistas – alguns, inclusive, são da esquerda - que os EUA estariam fomentando essas manifestações para desmantelar a soberania da antiga Pérsia. Como se o Irã fosse um exemplo de democracia e respeito aos direitos humanos. Como se as mulheres não fossem capazes de gerar e gerir suas revoltas. Enfim, mais um discurso machista e misógino.
Em “Lendo Lolita em Teerã”, a escritora e professora Azar Nafisi, fala não só sobre a sociedade machista e misógina do Irã, mas, narra, também sobre os movimentos libertários que pretendiam ventilar o Irã com novos ventos e pediam a queda do Xá Reza Pahlevi, aliado dos EUA. A Revolução Islâmica foi feita, com a ajuda da oposição, dos libertários e marxistas, que, posteriormente, foram perseguidos, presos, torturados e fuzilados pelos defensores da moral e dos bons costumes. Inclusive, o Partido Comunista do Irã foi fechado.
Muitas outras mulheres iranianas foram mortas nas ruas ou nas celas do Irã, como Neda Agha-Soltan, estudante de filosofia, assassinada numa manifestação de rua. Para ela, escrevi o poema que reproduzo abaixo:
“NEDA AGHA-SOLTAN
Seres humanos ganham as ruas de Teerã
pedindo o que é direito universal.
A brutalidade atropela a multidão faminta,
sedenta de Liberdade.
Qual o preço da Liberdade?
O corpo inerte de Neda Agha-Soltan
viaja pelo mundo, via internet, cai na minha caixa
de e-mails.
Seu sangue mancha minha tela
e minha insignificante poesia.
Que importa a poesia agora, neste momento,
quando a liberdade é violada,
estuprada,
assassinada.
A poesia é nada.
O ser humano é nada.
O ser humano é Neda,
violentado em seus direitos.
Sou um ser humano atingido pela bala
que matou Neda.
Estou ferido.
Meu coração sangra.
Minha alma é atravessada
por uma adaga impiedosa.
Vim aqui para manifestar o meu repúdio.
Seres humanos presos,
professores presos,
estudantes presos,
pensamentos presos,
jornalistas presos,
imprensa amordaçada.
Em nome de Deus – sempre!
Como na portuguesa e tão presente inquisição!
20 anos, estudante de Filosofia
da Universidade de Teerã,
Neda Agha-Soltan poderia ser minha filha,
Minha sobrinha,
minha irmã,
minha prima.
É minha irmã no pensamento,
e na mesma luta.
Estou diante do desespero e do sofrimento
daqueles que tentam reanimá-la.
Inútil.
Neda cerra seus lindos olhos para sempre
até tornar-se um mártir de uma nova Revolução.
Seu sangue mancha o azul da Terra
e o verde de sua luta.
A Pérsia chora.
O mundo chora.
Mas os Aiatolás não derramam uma lágrima.
O amor foi golpeado – mais uma vez.
Peço a Alá que zele pelo povo do Irã”.
Quando as mulheres, enfim, vão às ruas para queimar seus véus, a imagem da “Queima de sutiãs" (em inglês, "Miss America protest", ou simplesmente "bra-burning"), na América, me vem à mente. Como a luta, através de livros ou conferências, de outras mulheres como Maria Lacerda de Moura, Emma Golden, Luce Fabri, entre tantas outras.
Dizia Emma Goldman, feminista e anarquista: “Eu desejo a independência da mulher, seu direito de apoiar-se; viver por si mesma; amar quem lhe agrada, ou quantos lhe agradam. Eu exijo liberdade para ambos os sexos, liberdade de ação, liberdade no amor e liberdade na maternidade”.
Mas o véu invisível ainda existe no ocidente – e o Brasil não fica atrás -, com todos os seus discursos machistas e misóginos. Quantas jornalistas e políticas já foram insultadas pelo presidente e por sua caterva? Já foram chamadas pelo “Mito” de “vagabundas” – uma delas, política, segundo o cavalgadura de plantão, não merecia ser estuprada porque era feia. A outra, que o processou, ouviu a seguinte frase: “- Ela veio aqui para dar o furo”. Uma outra, seria, para o inominável, a “vergonha do jornalismo”. E mais outra, no interior de São Paulo, candidata do PC do B, foi xingada de “vadia”, por um partidário do presidente.
Se “Assim caminha a humanidade”, não teremos um belo futuro pela frente. Ou partimos para uma séria revolução social, libertária, ou procuramos um outro planeta no universo para que possamos viver uma vida melhor.